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Se Deus existe, não pode ser de direita

Se Deus é Deus, não pode ser de direita

                “Deus deve ser um cara bom, mas os amigos dele e o pessoal que o frequenta, eu não recomendaria” (Woody Allen). Essa afirmação do cineasta norte-americano pode provocar riso, mas pode também rasgar o véu que disfarça uma tragédia. Recorda que, durante toda a história da humanidade, Deus tem sido mais usado para legitimar conquistas, impérios e barbáries do que para vacinar a humanidade contra o ódio e nos ensinar a amar. Em Porto Alegre, no 3º Fórum Social Mundial (2003), José Saramago afirmou: “A humanidade se especializou em matar e muitas violências foram cometidas pelo ser humano durante a sua história. As mais terríveis foram as praticadas em nome de Deus, seja porque se revestiam de atos santos, como porque procuravam ferir as pessoas, não apenas em sua carne, mas no mais interior do seu ser: a consciência”.

Atualmente, o Brasil parece possuído por uma onda de loucura coletiva que se expressa em desprezo pela Política como caminho de organização da sociedade em vista do bem-comum e pelo ódio irracional e fanático pelo PT. Esse ódio não se explica pelos muitos erros que o PT cometeu em seus anos de governo. As pessoas que o divulgam nem sabem e nem criticam o fato de que o PT não fez as reformas estruturais que eram necessárias à sociedade. A eles pouco importa que o PT não tenha posto em prática uma justa política ecológica e que não tenha defendido como deveria às comunidades originárias – indígenas e outras. Isso lhes é indiferente. Não é por isso que essa massa, hoje, grita novamente nas ruas Crucifica-o, Crucifica-o. Odeiam o PT e a esquerda porque a imprensa e a elite os fazem repetir os mesmos slogans contra a corrupção. Repetem o que a direita raivosa que Jessé de Souza denomina “a elite do atraso” quer que acreditem. 

A maioria vota para ter o direito de ter uma arma no bolso. Caminham alegremente para uma sociedade na qual florescem  preconceitos e discriminações. Os analistas sociais podem repetir que isso sempre foi assim. Desde os tempos da escravidão, o inimigo mais perigoso do escravo era o seu companheiro escravo que o denunciava ao patrão para obter com isso alguma migalha de benefício. Nem se pode falar em opção pela direita. Em muitas mesas de eleição, por todo o país, nesse primeiro turno, mesários viram muitas pessoas entrarem na cabine sem ter ideia do que deveriam fazer. Houve casos em que, na própria sala de votação, pessoas catavam papeis no lixo para descobrir algum número que pudessem aleatoriamente clicar na urna. Em um contexto como esse, o discurso da esquerda passa por cima das cabeças e não toca na vida real de quem levanta de manhã e luta para chegar vivo/a até à noite. 

Muitas dessas pessoas que deram essa enxurrada de votos a seus maiores inimigos se dizem cristãs. Muitas delas frequentam Igrejas. Entre elas, há pastores, ministros/as, padres, bispos, religiosas/os consagradas/os. Nada indica que esses fieis e pastores/as tenham mudado de orientação de vida. Sempre foram assim. Cresceram e vivem em uma fé que lhes ensina o individualismo egoísta e lhes permite mais discretamente ou menos classificar as pessoas em mais ou menos espirituais e discriminar os diferentes. Esse modo de viver a fé transforma Deus em tapa-buraco para mascarar angústias e carências cotidianas. Em muitas Igrejas evangélicas e pentecostais, refaz-se o modelo de religião cultual do Judaísmo do templo, o mesmo que condenou e matou o profeta Jesus, de quem  se dizem discípulos. Quanto a muitos grupos católicos atuais, dos anos 90 para cá, se restaurou uma sensibilidade litúrgica barroca e um tipo de piedade sentimental que desliga as pessoas do cotidiano coletivo e das lutas simples da vida. Basta olhar o teor dos cânticos litúrgicos e do gosto artístico que não poucos padres jovens e mesmo bispos ostentam para se dar conta de que construíram um ambiente religioso à parte da sociedade civil com suas lutas básicas. É nesse tipo de cultura religiosa que Nossa Senhora costumava aparecer sempre que havia perigo de Comunismo. Apareceu em Lourdes, pedindo oração e penitência, quatro anos depois do Manifesto Comunista (1858). Apareceu em Fátima para pedir orações para a conversão da Rússia (1917) e, nos anos 80 em Medjugorne, Polônia, para ajudar João Paulo II a destruir o Socialismo polonês. 

Deus não pode ser de direita. Já Nossa Senhora, até parece. Nada mais natural que o ditador Salazar tenha dado todo apoio (econômico e social) a tornar Fátima um grande santuário de peregrinação mundial. No Brasil, Aparecida foi muito apoiada pelo Estado Novo (Getúlio Vargas) e quem tornou 12 de outubro feriado nacional foi o general Figueiredo, pouco preocupado com direitos humanos e democracia, mas bom devoto mariano. Nada de novo debaixo do sol. Assim, hoje, temos canções novas, obras de Maria e arautos do evangelho, a sonhar com a Idade Média perdida e a velha Cristandade que condenava hereges e submetia todos ao poder do clero. 

Que bom que alguns bispos mais abertos e lúcidos se pronunciem em uma linha esclarecedora. Que bom o pronunciamento aberto e claro do CONIC (Conselho Nacional de Igrejas Cristãs) e de muitos padres contra o fascismo. Mas, o trabalho de depuração de terreno terá de ser maior do que apenas reagir ao susto repentino e gritar contra o terror que se aproxima. Vai ser necessário rever onde guardamos e chocamos os ovos de serpente que agora estão espalhando as cobrinhas novas pela casa toda. É preciso combater os vírus da intolerância e do desamor, do sistema diabólico do farisaísmo e da arrogância religiosa que Jesus combateu no modo de se viver a fé e a espiritualidade, na elaboração da teologia oficial que ainda se expressa sobre Deus como Poder Absoluto e Arbitrário. Mesmo padres abertos ainda compactuam com a transformação dos sinais amorosos de Jesus em estruturas clericais de garantia da salvação eterna. O momento atual é para todos nós um chamado ao empobrecimento evangélico (Kenosis) para que consigamos superar a estrutura eclesiástica piramidal, legitimadora da desordem que queremos combater no mundo. 

Hoje, medito na oração de Etty Hillesun, jovem judia de 28 anos, condenada à morte em um campo de concentração nazista. De sua prisão, em uma manhã de domingo, ela escreveu em seu diário: 

"Meu Deus, esses são tempos angustiosos. (...) Prometo-te apenas uma pequena coisa. Procurarei não piorar a situação com o peso de minhas preocupações. (...) Para mim, uma só coisa é evidente: é que, nessa situação tão extrema, Tu não podes nos ajudar. Somos nós que teremos de ajudar a Ti. E assim poderemos ajudar a nós mesmos/as. Em uma situação como essa, a única coisa que podemos salvar e a única que realmente conta é um pequeno pedaço de ti em nós mesmos/as, meu Deus. E talvez, possamos também contribuir para te desenterrar dos corações devastados de outras pessoas. Sim, meu Deus, parece que tu não podes fazer nada para modificar as circunstâncias atuais pelas quais passamos, mas isso também faz parte da vida. Eu não chamo em causa a tua responsabilidade (de Deus). Depois, talvez sejas Tu que declararás sermos nós os/as responsáveis. Quase a cada batida do coração, cresce minha certeza: tu não podes ajudar-nos. Nós é que temos de ajudar a Ti, defender até o fim do fim, a tua casa em nós”[1]



[1]- ETTY HILLESUN, Diario, 1941- 1943, Oração de uma manhã de domingo, 12 de julho 1942, Milano, Adelphi Edizioni, 1985, p. 169. 

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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