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Ser felizes mesmo no meio de tanta dor

Ser felizes mesmo no meio de tanta dor

    Neste VI Domingo comum (do ano C), o evangelho lido nas comunidades nos traz um texto básico para a nossa fé: Lucas 6, 17- 26. Provavelmente os evangelhos colhem palavras que Jesus disse aqui e ali e as reuniram em uma unidade como se fosse um discurso. As perspectivas a partir das quais Mateus e Lucas contam as mesmas palavras de Jesus são diversas. Mateus conta a proclamação das bem-aventuranças como início do Sermão da montanha (Mt 5- 7) que mostra Jesus como novo Moisés transmitindo a aliança de Deus para um Israel ampliado e aberto. Lucas toma só algumas partes do discurso e o situa em uma grande planície, como que visando a extensão do mundo inteiro. Resume as bem-aventuranças em quatro e acrescenta quatro lamentações que Mateus não tinha trazido. 

Nos versículos 17 a 19, (texto que não entra na leitura litúrgica desse domingo), Lucas situa o contexto social. Diz que o cenário a partir do qual Jesus falou é o de um povo aberto que se reúne para escutar Jesus e ser curado. Frisa que as pessoas vêm tanto da região judaica, como do mundo grego-pagão, o que é exatamente a realidade das comunidades para as quais, nos anos 80, esse evangelho foi escrito. A ação terapêutica de Jesus une a palavra e o toque corporal. No entanto, Jesus propõe mais do que a cura de doenças: propõe um caminho novo de vida: o caminho das bem-aventuranças. 

André Chouraqui, judeu cristão, que conhece bem a terra de Jesus e os costumes da época, traduz as bem-aventuranças por “em marcha”, ou “para frente!”. Na cultura em que Jesus viveu, a infelicidade é estar parado. Em hebraico, o termo para doença é mahala, que quer dizer andar em círculos, estar preso, fechado em seu sofrimento, em seus pensamentos ou até mesmo em suas emoções.  Tem gente que vive parada sobre a própria imagem, fixada nos sintomas, paralisada pelas memórias pesadas, negativas ou pela saudade idealizada do que foi vivido e acabou. Por isso, a bem-aventurança consiste, de fato, na disposição de dar um passo à frente. 

Uma boa definição da espiritualidade é dar um passo a mais do lugar onde se está. (...) No seu livro sobre as bem-aventuranças, Jean-Yves Leloup insiste: “as bem-aventuranças são, cada uma, um convite para nos recolocar em marcha, a partir de nossas lágrimas, a partir do caminho que já percorremos. Há ainda muito a caminhar” (Vozes, 2004, pp. 57- 58).  

A comunidade de Lucas proclama “felizes” e convoca para se pôr em marcha, “a vocês”, pobres, famintos e pessoas que choram”. E o motivo pelo qual são abençoados ou felizes é que Deus não quer que haja injustiças e desigualdade no mundo. São bem-aventurados/as, porque, como daqui a pouco o reinado de Deus vem ao mundo, poderão deixar de ser pobres, famintos e aflitos. Ao colocar os verbos no presente, (“O reino é de vocês”), Jesus não fez apenas uma promessa para o futuro. De acordo com essas palavras, é possível ser feliz já, mesmo em meio à luta da vida.

Quando o evangelho de Lucas proclamou essas palavras de Jesus, as comunidades cristãs tinham sido testemunhas da guerra dos romanos contra os judeus. Tinham visto a destruição do templo e  viviam a repressão violenta do império, sob o imperador Domiciano. De modo algum, a perspectiva social e política permitia a proclamação de qualquer saída esperançosa. Nesse contexto, o anúncio das bem-aventuranças para as pessoas pobres e sofredoras podia parecer uma loucura. Qual a base histórica para afirmar que as pessoas vítimas da sociedade imperial poderiam ser consoladas e, de alguma forma, viver a alegria do reinado divino? Ainda em nossos dias, como crer que a proclamação das bem-aventuranças não é pura loucura de uma esperança impossível? O que significa proclamar bem-aventuranças para as pessoas que estão excluídas e são vítimas do Brasil de Bolsonaro? Concretamente, mudará alguma coisa? Não podemos acreditar que o projeto divino seja que as pessoas suportem injustiças e iniquidades para depois gozarem as delícias do céu. Esse tipo de interpretação da fé legitimou o Cristianismo colonial escravagista. A perspectiva das bem-aventuranças de Jesus tem de ir no sentido oposto. Tem de ser o anúncio de  que chegaram os tempos messiânicos e as pessoas deserdadas e marginalizadas pelo mundo são preferidas do reinado de Deus para mudar as condições do mundo. As pessoas pobres e excluídas não são bem-aventuradas por causa dos seus méritos e sim simplesmente porque Deus as ama e quis salvá-las. 

Na América Latina, a Teologia da Libertação nos ensinou a viver a comunhão com os pobres, mas contra a pobreza injusta. Agora, a Ecoteologia nos ensina que para a sobrevivência da vida na terra, é preciso mudar totalmente esse sistema de consumo. Os índios nos ensinam o paradigma do bem-viver (colocar-se em comum uns com os outros e com a terra e priorizar o bem-comum). 

Conforme Lucas, do mesmo modo que “parabeniza” aos pobres, famintos e sofredores, Jesus proclama quatro lamentações. Conforme o evangelho, ele estava na planície, com uma multidão de pobres que vieram para ser curados/as e libertados/as. Ali não estava ninguém rico. Mesmo assim, Jesus proclama essas lamentações: “Ai de vocês, ricos e todos os que estão muito bem na vida...”.  Certamente, Lucas se refere mais a pessoas e grupos da sua época do que diretamente a pessoas do tempo de Jesus. Nesse discurso, Jesus fala do presente e denuncia situações de injustiça. Ele reconhece: rebelar-se é justo, porque este mundo é absurdo. Sim, temos não só o direito, mas o dever sagrado de denunciar e de rogar praga contra um governo que é contra o direito dos pobres e contra um sistema que atenta contra a vida. Jesus faz isso ligando a situação atual com uma visão mística do futuro, aberta à esperança do reino, ou seja, a certeza de um mundo novo. Esse é o nosso caminho para juntos ser felizes. 

 

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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