Marcelo Barros
Jo 18,1- 19, 42
A Páscoa da Cruz nas pessoas crucificadas e nos povos martirizados
Neste dia em que celebramos a Páscoa da Cruz, é uma graça divina mas também uma responsabilidade escutar a boa nova contida na narrativa da paixão de Jesus segundo João. Ela se diferencia das outras versões da paixão. Enquanto os outros sublinham os sofrimentos de Jesus, o quarto evangelho prefere mostrar como, mesmo no meio de todo sofrimento, Jesus tem a iniciativa de ir dirigindo os acontecimentos. Enquanto Marcos, Mateus e Lucas conta que Jesus passou por um momento de agonia e angústia no Horto das Oliveiras, João conta que, no jardim, no qual foi preso, é o próprio Jesus, que vai ao encontro dos soldados e toma a iniciativa de perguntar: A quem procurais? E quando eles dizem: Jesus de Nazaré, Jesus responde: Sou eu, a mesma palavra que define o nome divino no Êxodo. Ao ouvir essa palavra, são os soldados que caem e Jesus que fica de pé. Do mesmo modo, é Jesus que se proclama a Pilatos como sendo testemunha da verdade do reino do Pai. De acordo com esse evangelho (e é o único dos quatro evangelhos que diz isso), foi ao inclinar a cabeça para expirar que Jesus nos entregou o Espírito.
Que sentido tem para nós hoje receber em nossas vidas esse evangelho com essa visão aparentemente pouco histórica e mais teológica da paixão de Jesus que o quarto evangelho chama de “exaltação do Filho do Homem”?
No final dos anos 1970, em uma aldeia dos índios Bororo no Mato Grosso, Umero, velho guerreiro do seu povo confidenciou a um religioso: - Padre, o problema nosso é que estamos sendo destruídos como povo e estamos perdidos. E eu vou lhe dizer em segredo por que. Deus está com raiva de nós, muita raiva e decidiu nos destruir. Sabe por que? Imagine que os missionários salesianos andaram por aí espalhando que nós bororo somos culpados da morte do filho de Deus. Nós por causa de nossos pecados, O senhor é padre, mas deve compreender. A gente briga, a gente às vezes faz coisa que não presta, a gente pega mulher que não é a da gente e aí o padre disse que a gente pecou e por isso matou o filho de Deus. E eu garanto ao senhor, padre, a gente nem conheceu ele no tempo que ele era vivo... Como é que a gente pode ter matado o filho de Deus?
O religioso só conseguiu responder:
- Deus tem muitos filhos: tem Jesus que é o primeiro, mas toda a humanidade, homens e mulheres, são filhos de Deus. Você tem filhos?
- Ah padre tenho oito e tenho netos e netas.
- Pois bem. E se um deles fizer alguma coisa que você não gosta deixa de ser seu filho?
- De jeito nenhum.
- Se algum deles, por ignorância e por não saber direito como devem ser as coisas agir errado, você vai querer acabar com ele por causa disso?
- De jeito nenhum.
O religioso concluiu:
- Quanto mais Deus que é puro Amor, que só sabe amar. Não é Deus que está fazendo mal ou querendo destruir vocês. São os mesmos que mataram o filho de Deus: são os que querem oprimir os outros, ter mais dinheiro, tomar a terra dos outros. Deus sabe que foram eles que não agem como filhos de Deus e continuam até hoje a matar os filhos e filhas de Deus que são vocês, índios, negros e todas as pessoas oprimidas.
Em El Salvador, o bispo São Oscar Romero celebrava a paixão de Jesus contemplando a paixão dos pobres no mundo atual. Não para dizer: são santos porque estão na cruz e assim depois de mortos vão para o céu. Não. Ele apontava que o povo estava crucificado e que a obrigação de quem tem fé é fazer tudo, o possível e o impossível para tirá-los da cruz. Por isso, ele, Romero, também foi martirizado como Jesus.
De fato, continuamos a viver em um mundo no qual imensa parte da humanidade está sendo crucificada pelo poder econômico que domina o mundo e beneficia uma minoria de menos de 5% da humanidade. Por isso, mais de um bilhão de pessoas no mundo passam fome, mais um tanto sofre carência de água potável, milhões de migrantes que não são reconhecidos como pessoas humanas. E a própria Terra, nossa casa comum, como diz o papa Francisco, está sendo crucificada e ferida pela ambição humana.
Apesar de todas as dificuldades e dos fracassos que nos sobrevêm diariamente, a nossa fé nos pede que levantemos a cabeça, renovemos a esperança e possamos descobrir a vitória pascal de Jesus ocorrendo em meio às nossas lutas interiores e morais, assim como nas lutas sociais.
O único modo que vale a pena a gente falar da paixão de Jesus é para proclamar que Jesus morreu na cruz para que todos possam viver e nunca mais ninguém morrer na cruz. Jesus morreu na cruz para que nós todos lutemos para descer da cruz os oprimidos e perseguidos que até hoje continuam crucificados. Nós celebramos a crucifixão para descrucificar os crucificados de hoje. A cruz de Jesus é esse sofrimento assumido por missão, por amor e solidariedade a todos os seres humanos, especialmente aos mais pobres e os grupos e categorias marginalizados ou perseguidos pela sociedade dominante.
O evangelho de João revela que, mesmo na Cruz, Jesus se preocupa com sua mãe ali chorando ao pé da cruz e com o discípulo amado que representa todos nós, discípulos e discípulas. E assim como Lucas revela Jesus perdoando os seus algozes e inimigos, João nos mostra Jesus nos dando o seu Espírito mesmo quando teria motivos de se sentir abandonado e meio traído pelos próprios discípulos. Essa atitude de amor não violento e paciente é o que ele pede de nós na nossa militância. Nós aprendemos desse relato da paixão que o que Deus nos pede hoje é rever e corrigir nossas atitudes de intransigência e intolerância que não nos tornam radicalmente diferentes dos nossos adversários.
Em seu livro Jesus Libertador, o teólogo Jon Sobrino, traduz o pensamento do mártir Monsenhor Romero em El Salvador e escreve:
“Toda violência, mesmo a que pode chegar a ser legítima, tem um potencial desumanizante. A violência desata uma lógica interna que termina destruindo mesmo quem a exerce. (...) Mesmo se, como última reação de defesa e para impedir um mal pior, a violência possa ser compreensível, como regra geral e método de vida e de ação, é preciso não ceder e rejeitar qualquer ato, gesto, palavra que abra a porta à violência, seja física, seja psicológica, seja simbólica. Só quando aderimos à utopia da paz e começamos a vivê-la cotidianamente no nosso modo de ser e de viver, estamos do lado de Jesus e vivendo como discípulos e discípulos dele” (Cf. Sobrino, 1992, p.316).
Quando o relato desse evangelho nos fala da cruz vitoriosa de Jesus é para nos ajudar a ver que o amor e a solidariedade podem tornar vitoriosas as lutas dos pequenos por justiça e por paz. Na cruz Jesus nos entrega o seu espírito que é o Espírito Santo para nos animar nessa luta para que venha a esse mundo o reino de Deus.