4º Domingo do Advento – Mt 1, 18-24
Sinais de gravidez de uma humanidade nova
Este evangelho diz que o Mensageiro de Deus, ou podemos também interpretar uma materialização da Palavra de Deus, falou com José em sonho, a respeito da gravidez inesperada de Maria. Deus precisa que José não rejeite Maria. Não faça como, em todas as culturas, tantos maridos fazem ao descobrir que a mulher está grávida de um filho que não é dele. José compreende que, no sonho, Deus pede que acolha Maria. Garanta a ela a respeitabilidade que, em uma sociedade patriarcal, uma mãe solteira não pode ter.
Homem justo, José não pediu explicação sobre como Maria ficou grávida. Não procurou saber como foi essa ação do Espírito Santo no corpo de Maria. Como explicar o que a tradição cristã chamou de "gravidez virginal de Maria"? Desde criança, aprendemos que se deve aceitar como milagre e não precisa de outra explicação. Basta afirmar que é motivo de fé e por mais estranho que pareça, devemos crer e pronto.
Nesse Natal Deus nos pede para não interpretar esse texto de forma fundamentalista. Todos nós sabemos os sofrimentos humanos e discriminações que a leitura fundamentalista de textos do antigo e do novo testamento bíblicos tem produzido. E se lamentamos o fundamentalismo de alguns grupos pentecostais, não vamos nós fazer a mesma coisa. Eles fazem com um determinado texto e nós fazemos com outro.
Uma leitura fundamentalista desse evangelho se centra no fato de que “a virgem concebeu sem relações com nenhum homem, por obra do Espírito Santo”. Hoje, há quem leia isso como símbolo de algo que ninguém compreende. Sem falar, nos comentários mais críticos aos quais, nos séculos antigos, os pais da Igreja procuraram responder. Como escreve a irmãos e irmãs de origem hebraica, as comunidades cristãs do evangelista Mateus redige um midrah, comentário de tipo rabínico, sobre como Jesus recebeu o seu nome. Nem salientava tanto o nascimento e sim o nome de Jesus que significava a sua missão no mundo. Quando os evangelhos passaram para o mundo greco-romano, essa cena poética foi entendida de forma literal e até hoje é como um dogma para todas as Igrejas cristãs, como se o fato de Maria ser virgem fizesse dela mais pura, mais santa e mais capaz de ser mãe de Jesus.
Como todas as pessoas que se amam, principalmente se são jovens, José e Maria têm sonhos. Em geral, no Natal, se fala muito de Maria e do menino. Fala-se menos em José. No entanto, o Evangelho de Mateus diz que tudo dependia dele, porque se não fosse ele, Jesus não poderia ser considerado descendente de Davi. José precisava assumir como seu filho o menino que ia nascer. Assim, iria possibilitar que ele fosse reconhecido como “filho de José”. Muitas vezes, na literatura cristã e mesmo na arte dos presépios, José é mostrado como um velhinho de barba branca. No entanto, se levamos a sério esse evangelho, José deveria ter mais ou menos 20 anos. E Maria menos ainda. E, de repente, ela aparece grávida. Uma gravidez inesperada pode acarretar mudanças nos planos do casal. Conforme esse evangelho, a gravidez de Maria, antes que ela e José tivessem coabitado, exigiu muito de José. O texto não diz que José desconfiou da honestidade ou da moral de Maria. Foi por não compreender o mistério que havia ali que José decidiu deixá-la sem dizer nada. No entanto, em um sonho, descobriu que deveria entrar no sonho de Deus que era bem maior do que o dele e, assim, José acolheu o Mistério que se dava em Maria. Assim, ele deu sua colaboração essencial para que o sonho de Deus pudesse se realizar.
A exegese deste texto se baseia no fato de que, para cumprir as escrituras e as promessas divinas, José, sendo da descendência de Davi, deveria dar o nome ao filho que vai nascer. Jesus será chamado filho de José e para isso, o Anjo lhe aparece e pede que aceite Maria. O evangelista comenta Isaías 7 para mostrar que no nascimento de Jesus se cumpre plenamente a profecia de Isaías ao rei Acaz. Oito séculos antes de Cristo, no tempo do profeta Isaías, o anúncio era de que uma jovem tinha engravidado do rei e esse teria um filho (Ezequias) que seria considerado Emanuel, isso é, sinal da presença divina no meio do seu povo (Deus conosco). O sinal de que Deus estaria com o seu povo seria o fato de que antes de que o príncipe Ezequias crescesse, os dois impérios (Assíria e Egito) que ameaçavam o povo de Deus estariam derrotados e o povo teria paz. Ao usar a Bíblia na sua tradução grega, Mateus traduz o termo hebraico jovem pelo grego virgem e usa o texto de Isaías para justificar o nascimento milagroso de Jesus, o novo Emanuel: Deus conosco.
A tradição cristã, influenciada por uma cultura estrangeira à Bíblia, quis em seus comentários sublinhar a virgindade de Maria para exaltar a sua pureza e acentuar certo desprezo da corporalidade. Isso não é bíblico e nada tem a ver com a narrativa de Mateus. Na cultura do tempo de Jesus e do Evangelho de Mateus, a virgindade não é virtude e nem significa que Maria é mais santa ou mais pura. Provavelmente, o evangelista chamou Maria de virgem para acentuar que ela era pobre. (Nem tinha marido e nem era fecunda como deveria ser toda mulher em Israel). Na Bíblia o não poder ter filho é sinal de pobreza e até de falta da bênção de Deus. Por isso, no Evangelho de Lucas, o anjo que aparece a Maria tem de começar dizendo: Ave, cheia de graça. Você é sim objeto da graça divina. Nos evangelhos como este, Maria é símbolo da pobreza de Israel, dependente dos impérios estrangeiros (na época do império romano) e sem esposo, já que havia rompido a aliança com Deus. A própria Maria, quando recebe de Isabel a notícia de que vai ser mãe do Messias, reage cantando: “Deus olhou para a pobreza (ou humilhação) de sua serva”.
Em uma sociedade patriarcal, a humilhação de Maria era ser virgem e sem marido. No entanto, nesse contexto, ao escolher Maria, Deus revela que rompe com o patriarcalismo e começa uma nova história. Hoje, as comunidades podem cantar: “Da cepa brotou a rama, da rama brotou a flor, da flor nasceu Maria, de Maria o salvador”.
Quando o evangelista Mateus escreveu esse texto, Jerusalém tinha sido destruída (anos 80 do 1º século da era cristã). Não havia mais templo e parecia não haver mais esperança para o povo da promessa. É nesse contexto que o Anjo do Senhor fala a José. O Anjo do Senhor é como os textos bíblicos falam da manifestação de Deus a Abraão, a Moisés e aos profetas. O Anjo do Senhor é a Palavra de Deus (não é como em Lucas, o anjo Gabriel). É o anúncio de uma nova aliança na qual Deus está conosco e em nós.
As condições sociais e políticas da nossa realidade são diferentes daquelas nas quais Mateus escreveu esse texto. No entanto, assim como o império romano tinha praticamente destruído a experiência do Israel mais livre (depois dos Macabeus), o império que atualmente domina o mundo procura permanentemente destruir as experiências de liberdade e autonomia no Brasil e em toda América Latina. Na época de Mateus, Soter (Salvador) era o título que o imperador Vespasiano se dava. O evangelho nos aponta que a verdadeira salvação vem de comunidades pobres e impotentes (virgem) que engravidam de um projeto novo de vida e de libertação. Por mais dura e escura que parece a realidade atual, o evangelho de hoje nos convida a descobrir onde está surgindo a gravidez desse mundo novo que irrompe no meio de tanta estupidez e crueldade e nos dá a graça de sentir e testemunhar que Deus é Emanuel, Deus conosco. Ver e construir soluções férteis em ambientes de aparente esterilidade é o desafio que somos chamados a abraçar neste tempo de natal.
Neste domingo anterior ao Natal, somos chamados/as a contemplar as situações de gravidez que vivemos. Cada um/uma de nós pode curtir de que novidade estamos grávidos/as. Podemos perceber do que e de quem estão grávidas as nossas comunidades. Podemos acolher e ajudar na gravidez dos povos originários que como Maria parecem gerar do Espírito Divino e dos Encantados uma vida nova inesperada e que é salvação, como o nome de Jesus é Salvação.
Que alegria podermos, cada um/uma de nós, escutar hoje o Anjo do Senhor que faz de nós novos José e nos pede que acolha as Marias grávidas da novidade de Deus no mundo como sendo ação do Espírito Santo. Assim como José com Maria grávida, temos de proteger e cuidar dessa gravidez de uma humanidade nova, onde quer que ela se manifeste.
Ó, Ó Emanuel, Deus conosco, nosso Salvador
Esperança de todas as nações, Desejado de todos os corações
E dos pobres maior libertador. Finalmente, vem salvar-nos, vem, Senhor,
Ó Deus nosso, ouve as nossas rogações, ó, ó, ó...
Quanta sede, quanta espera, Quando chega, quando chega aquele dia (bis)
(Antífona Ó – novena de Natal no Ofício Divino das Comunidades, p. 503)
Mesma melodia do Ó Sabedoria
