Neste XXVII domingo comum do ano, o evangelho Marcos 10, 2- 12 contém uma passagem que facilmente pode ser lida e interpretada hoje no sentido fundamentalista e contrário ao espírito de Jesus.
Para compreender bem essa discussão que Marcos descreve como o primeiro confronto que Jesus enfrenta com os religiosos do templo na Judeia, é preciso lembrar que o evangelho diz que alguns fariseus fazem a pergunta a Jesus para colocá-lo em uma armadilha. Ele é favorável à lei ou é contrário? Por saber que a intenção dos seus adversários não é honesta, Jesus responde também de forma provocadora:
- O que Moisés vos ordenou?
(Esse vos mostra a distância que Jesus toma da lei: ordenou a vocês, fariseus e doutores da lei).
Quando eles respondem, Jesus mostra que a lei de Deus é sempre histórica, depende do contexto. Não é absoluta. Jesus responde: “Isso foi por causa da dureza do vosso coração”.
Isso confirma que quem faz leitura fundamentalista e absolutiza a lei como algo que condena e aprisiona as pessoas vai no caminho contrário ao que Jesus propõe.
Na discussão com os fariseus, Jesus se nega a entrar propriamente no assunto do divórcio. Coloca a questão a partir de outros pressupostos.
A sociedade de Jesus era patriarcal. Naquele tipo de sociedade, não havia casamento de pessoas. Eram as famílias que negociavam seus filhos e filhas, crianças ou adolescentes. O casamento era transação de famílias. Então, nesse tipo de sociedade, o divórcio gerava guerra de famílias e vinganças violentas. A preocupação de fariseus e doutores da lei era defender a possibilidade do homem que queria se casar com outra, despedir a primeira mulher. E é exatamente isso que Jesus ataca. Ele não diz uma palavra sobre o divórcio, mas se pronuncia contra mandar a mulher embora para casar com outra. Os fariseus tinham perguntado sobre o divórcio. Jesus fala contra o mandar a mulher embora. São duas expressões diferentes mesmo no texto grego. O que Jesus rejeita é o poder do homem sobre a mulher. Jesus repudia e denuncia a sociedade patriarcal. Diz claramente: Deus não criou o patriarcalismo. Não criou o machismo. Isso não é de Deus.
O casamento não é uma relação baseada na lei. Não é a lei que faz o casamento. Lei nenhuma é capaz de fazer duas pessoas permanecerem juntas, a não ser se detestando e provocando sofrimentos mútuos. Ao contrário, o casamento só tem sentido como união baseada no mais íntimo da pessoa. É um vínculo de carne, de sangue. É o amor de duas pessoas e esse amor sim é indissolúvel. Nenhuma lei pode abolir.
Jesus faz essa catequese sobre o amor em dois momentos, como muitas vezes temos visto no evangelho de Marcos: no primeiro momento, Jesus discute com os fariseus. No segundo, explica o assunto aos discípulos (e discípulas) na intimidade do grupo. No primeiro, ele repudia a sociedade patriarcal. No segundo, propõe outra base para a relação: a igualdade e o respeito amoroso.
Jesus viveu no Oriente Médio há mais de dois mil anos. Não é justo nem seria honesto aplicar um costume daquela sociedade para os nossos tempos e culturas de hoje. Em sua cultura, Jesus baseia a união do homem e da mulher sobre o relato mítico da criação de Adão e Eva. Hoje, qualquer exegese séria sabe que Adão e Eva não existiram como pessoas. Como fica então o fato de que Jesus argumenta a indissolubilidade do amor sobre o fato de que Deus uniu Adão e Eva?
Há padres e pastores que continuam até hoje a usar o argumento de que Deus criou o macho e a fêmea. Por isso, não se pode aceitar qualquer união afetivo-sexual que não seja entre homem e mulher. E usam o mito do Gênesis como lei que impõe um modelo à sociedade atual.
Isso nada tem a ver com Jesus e com os evangelhos. O que Jesus diz é que Adão e Eva representam a humanidade de todos os tempos e que a humanidade foi criada por Deus para o amor. No livro do Gênesis, a mulher e o homem se completam e se entrelaçam em uma unidade que expressa a própria unidade a qual todos e todas somos chamados/as como pessoas, homens e mulheres, homo ou hetero ou transexuais. Somos todos chamados à unidade entre nós e com Deus. Nesse sentido, no poema do Cântico dos Cânticos, a mulher amada, símbolo da comunidade dirá: “O meu amado é para mim e eu para ele (...). Eu sou para o meu amado e o meu amado é para mim» (Ct 2, 16; 6, 3).
Na exortação “A alegria do amor”, o papa Francisco afirma: “... evoca-se a união matrimonial não apenas na sua dimensão sexual e corpórea, mas também na sua doação voluntária de amor. O fruto desta união é «tornar-se uma só carne», quer no abraço físico, quer na união dos corações e das vidas e mesmo em algum filho ou filha que nascerá dos dois e, em si mesmo, carregará em si as duas «carnes», unindo-as genética e espiritualmente” (Amoris Letitia, 16). “Como característica que distingue seus discípulos e discípulas, Cristo pôs a lei do amor e do dom de si mesmo aos outros (cf. Mt 22, 39; Jo 13, 34), e fez isso através de um princípio que um pai ou mãe costumam testemunhar na sua própria vida: «Ninguém tem maior amor do que quem dá a vida pelas pessoas que ama» (AL 27).
Acolhamos, então, esse evangelho de hoje não como lei que ordena o que é permitido e o que é proibido e sim como um chamado ao amor que é indissolúvel e que se baseia na liberdade interior e na realização mais profunda de cada um/cada uma de nós.