Nessa noite de Natal, tive a graça de junto com o grupo da Partilha e o grupo Fé e Política e muitos amigos e amigas, celebrarmos a ceia de Jesus na Igreja das Fronteiras, local da memória da vida e do ministério do nosso profeta querido, Dom Helder Camara. Reparto aqui com vocês a meditação que ali partilhei com os irmãos e irmãs:
A mensagem que escutamos nessa noite de Natal é uma Boa Nova e ao mesmo tempo um chamado de Deus para nós. Não é mera repetição do que ocorreu em Belém. É consequência e prolongamento. Mas, a narrativa poética e simbólica do evangelho de Lucas nos mostra que a boa notícia de hoje ocorre dentro do mesmo modelo. Segue o mesmo padrão. Tem a mesma fonte. Como disse o papa Francisco: a fonte é um Deus apaixonado pela humanidade e que vem como Deus deitar-se em nossas palhas e nossas manjedouras.
O Evangelho insiste: "encontrareis uma criança recém-nascida, embrulhada em faixas e deitada em uma manjedoura". A boa notícia é de que não precisamos mais nos envergonhar da nossa fragilidade, das nossas falhas e de tudo o que em nossas vidas é estrebaria. Ao contrário, precisamos reencontrar e colocar no centro da nossa vida a criança que está em nós e acolher a criança no outro, principalmente nos empobrecidos e excluídos do mundo. Adélia Prado orava: "Meu Deus, me dá cinco anos. Me dá a mão e me cura de ser grande".
Mas, hoje quero insistir em um aspecto dessa mensagem de Natal que é política. O evangelho fala do decreto de recenseamento ordenado por Augusto, imperador de Roma. O objetivo dos recenseamentos era regularizar os impostos, fazer os pobres pagarem mais tributos. Todo mundo tem de pagar para viver. Hoje, um governo como o que temos atualmente no Brasil continua a fazer diariamente alguma medida legislativa contra os pobres. Mas o evangelho diz aos pastores: Vão ver o que aconteceu em Belém: na periferia do mundo. Vocês vão descobrir ali a novidade da salvação. Da aldeia pobre e insignificante de Belém vinha um novo movimento messiânico - mesmo uma criança pobre e retirante era um descendente de Davi e lembrava ao povo a proposta radicalmente nova e revolucionária do reino de Deus.
É nossa tarefa no Brasil, sermos para o nosso povo os pastores que hoje vão a Belém e descobrem a salvação vinda dos pequeninos que representam Jesus. E para fazermos isso, precisamos nos renovar permanentemente a nós mesmos. Nós não nascemos para morrer. Nascemos para viver. OU mais ainda: Vivemos para nascer. Não somos apenas seres mortais. Somos seres natais. Filósofas como Hannah Arendt e Maria Zambrano descobriram a vocação humana para isso que chamaram de "A hermenêutica do Renascimento". Não se trata apenas de uma terapia de lembranças e nem se trata só de descobrir que nossa vida atual é renascimento de vidas anteriores. Não estou entrando nesse tipo de cultura. Estou falando em renascer permanentemente no decorrer dessa vida atual e quem sabe única que temos. Optar pelo novo, renascer a cada dia mesmo no meio da luta e quando o corpo se desgasta é a forma de Deus estar em nós e para o mundo. É força de ressurreição.
Somos seres natais a partir da criança embrulhada em faixas e deitada em uma manjedoura. Nesse Natal, podemos sim retomar as palavras que João Cabral de Mello Neto coloca no seu belo poema Morte e Vida Severina:
"Severino, retirante, deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta da pergunta que fazia.
se não vale mais saltar fora da ponte e da vida.
Nem conheço essa resposta se quer mesmo que lhe diga.
É difícil defender só com palavras a vida,
ainda mais quando ela é essa que se vê: Severina.
Mas, se responder não pude à pergunta que fazia,
ela, a vida, respondeu com sua presença viva.
E não há melhor resposta do que o espetáculo da Vida.
Vê-la desfiar o seu fio, que também se chama Vida.
Ver a fábrica que ela teimosamente se fabrica.
Vê-la brotar, como há pouco, em nova vida explodida,
mesmo quando é assim, pequena,
a explosão como ocorrida, como a de pouco, franzina,
mesmo quando é explosão de uma vida Severina".