“Sonhar mais um sonho impossível”
Neste penúltimo domingo do tempo pascal, celebramos a festa que a tradição chama de “ascensão de Jesus”. Neste ano, o evangelho lido nas comunidades é Marcos 16, 15- 20. Trata-se de um texto acrescentado ao evangelho, que pede de nós atenção especial. Ler ao pé da letra poderia nos levar a um jeito de viver a fé contrário ao que o evangelho propõe.
Marcos e todos os evangelhos nos apresentam uma imagem de Deus que é Pai de toda a humanidade, Deus Amor que salva a todos por sua graça. No sermão da montanha, Jesus diz: “Deus faz nascer o sol sobre os bons e sobre os maus e faz chover sobre os justos e os injustos” (Mt 5, 45). Conforme Marcos, Jesus tinha dito aos discípulos: “Quem não é contra nós, está a nosso favor” (Mc 9, 40). O que significa, então, Jesus ressuscitado afirmar: “Quem crer e for batizado será salvo. Quem não crer será condenado” (v 16)? Em todo o evangelho, Jesus mostra aos discípulos que a fé não pode se basear em milagres e sinais extraordinários. Durante todo o tempo, Jesus se nega a dar sinais do céu (Mc 8, 12).
Como explicar que o Cristo manda os apóstolos em missão e promete que a palavra será acompanhada por milagres extraordinários? Jesus está cedendo à religião de milagres que até hoje tantas pessoas procuram?
Essa narrativa, colocada no conjunto do texto de Marcos bem mais tarde, abre a fé cristã às dimensões do universo. Antes, os apóstolos eram testemunhas do reinado divino para o povo judeu. Agora, devem ir para o mundo todo. O texto não fala do batismo confessional desta ou daquela Igreja. Trata-se de ser batizados/as, ou seja, mergulhados/as no projeto divino da salvação do mundo. Salva-se quem entra na lógica divina do amor, independentemente se crê em Deus ou não crê, ou seja, se reconhece ou não que o amor é a própria essência do Ser Divino. Quem não entra nessa perspectiva está condenado não por Deus que não condena ninguém, mas porque a própria pessoa se nega a entrar na lógica do amor.
Os antigos imaginaram a ascensão de Jesus como subida, como se o céu estivesse acima das nuvens. O apóstolo Paulo explicou que a humanidade de Jesus foi plenamente em Deus (Ef 1, 17- 23). Como a humanidade de Jesus é exatamente a mesma de todos/as nós, é nossa humanidade que foi assumida por Deus, ou seja, divinizada. Na eucaristia, a louvação popular que serve de prefácio canta “Os anjos aplaudem cantando: na glória divina, o ser humano chegou”. O que pode significar isso para nós?
O que o evangelho conta com essa imagem da ascensão de Jesus é o processo de divinização interior que podemos, hoje, contemplar nas pessoas e comunidades que vivem na lógica da ternura do reino divino e testemunham que o amor é mais forte do que a morte. Por mais que pareça, quem dá um rumo à história não são reis, generais, banqueiros e homens de negócio. Em cada geração, os poderosos proclamam sua vitória. Mas, quando ninguém imagina, a resistência das comunidades indígenas, negras, dos movimentos sociais e de todas as forças subversivas da história estão aí e revelam: um novo mundo é necessário, possível e estamos sim construindo.
Contemplemos essa força divina nas comunidades da resistência. Junto com elas, manifestemos o mistério da ascensão de Jesus hoje, o Jesus da gente, com rosto negro, sangue de índio e corpo de mulher. É isso que nos faz: “Sonhar mais um sonho impossível,
Lutar quando é fácil ceder
Vencer o inimigo invencível
Negar quando a regra é vender
Sofrer a tortura implacável
Romper a incabível prisão
Voar num limite improvável
Tocar o inacessível chão
É minha lei, é minha questão
Virar esse mundo, cravar esse chão
Não me importa saber se é terrível demais
Quantas guerras terei que vencer por um pouco de paz
E amanhã, se esse chão que eu beijei
For meu leito e perdão
Vou saber que valeu delirar
E morrer de paixão
E assim, seja lá como for
Vai ter fim a infinita aflição
E o mundo vai ver uma flor
Brotar do impossível chão