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Texto, comentário de um livro, domingo, 22 de novembro 2015

Caminhada de fé no coração do mundo

Todo bom livro contém certa sacralidade. Os religiosos descrevem revelações da Divindade, expressas em palavras humanas e manifestadas na história de pessoas comuns. Outros escritos são sagrados por desvendarem, para além das tramas da vida pessoal, familiar e social uma inteligência amorosa que conduz os acontecimentos a uma síntese interior, só possível de ser expressa com o coração.

Agora, ao completar 80 anos, Luiz Alberto Gómez de Souza nos presenteia com um livro denso e suculento, por ele intitulado: “Um andarilho entre duas fidelidades: Religião e Sociedade” (Rio de Janeiro, EDUCAM, Ponteio, 2015). 

É mais que uma autobiografia, porque, ao narrar o itinerário da sua vida e da sua família, ele a situa no coração da caminhada de fé dos grupos mais expressivos e proféticos da Igreja Católica, nos últimos 50 anos, assim também como de uma militância social brasileira que lutou para transformar o país e o mundo.

Como uma verdadeira celebração, memorial de vida, Luiz Alberto relembra suas memórias de infância e juventude. E faz isso com tal acuidade de visão e vivacidade de imagens que, nós, leitores, nos sentimos como se ele nos pegasse pela mão e, ao nos conduzir pelos meandros da sua história, nos provocasse a retomar o itinerário que cada um/uma de nós fez.

A narrativa de Luiz Alberto, descrita nesse livro, tem várias etapas que são mais do que capítulos literários da história. E ela muda de patamar para um nível superior e quase místico, quando Luiz Alberto encontra Lúcia. A partir de então, o militante cristão e de esquerda se reveste de uma aura contemplativa. E, como Beatriz a guiar Dante pelo paraíso, o amor de um pelo outro se revela a energia misteriosa que passa a ser uma força mística que domina toda a vida, deles e da família. Essa energia amorosa os confirma na direção que tomam, os fortalece nas provações que, uma vez ou outra, encontram. E, principalmente, os delicia com a bênção dos filhos e as conquistas que, mesmo em meio às dificuldades, vão realizando.

Quem lê com atenção as reflexões que pontuavam os grupos de juventude de Ação Católica do final dos anos 50 em Minas Gerais e Rio de Janeiro passa a compreender melhor a evolução intelectual do jovem militante que da admiração e adesão ao pensamento de Jacques Maritain evolui para o Personalismo de Emmanuel Mounier e o integra com as lições aprendidas do Padre Vaz. Tantas décadas depois, nos faz bem reviver, nas páginas desse livro, os debates sobre a inserção da fé na Política e as dores de parto que fizeram nascer a AP (Ação Popular). Aqui se compreende porque o espírito dos antepassados espanhóis fez desenvolver em Luiz Alberto a garra de um Dom Quixote a enfrentar, não moinhos de vento, mas os riscos de uma inserção social e política em tempos de ditaduras e com filhos pequenos a cuidar.

Em sua itinerância iniciática, para se refazer da secura dos desertos que precisaram atravessar, Luiz Alberto e Lúcia tiveram a imensa sabedoria de recriar verdadeiros oásis repousantes, concretizados em belos e profundos encontros humanos de afeição e diálogo. Esse livro revela o jeito de ser de um  casal com uma rara e impressionante capacidade de fazer amizades. Em meio a acontecimentos políticos nem sempre claros e a experiências de novos trabalhos, eles conseguem dar a luz a uma imensa rede de verdadeira fraternidade espiritual. E esses amigos e amigas pontuam cada etapa da caminhada de Luiz Alberto e Lúcia. São inúmeras pessoas, cada uma diferente da outra. Muitas se tornam quase protagonistas com eles dessa aventura teimosa em tornar fecundo o cotidiano. A algumas dessas figuras, como Dom Helder, Betinho e outros/as, Luiz Alberto dedica a segunda parte do livro, em uma memória de amigos que o marcaram. No entanto, em cada página do livro, do início ao fim, se sente que a fé na amizade tem primazia. A afirmação do valor fundamental desses encontros que norteiam a vida aparece de forma tão forte que esse livro de Luiz Alberto bem mereceria o mesmo título da obra de Raíssa Maritain: “As grandes amizades” (Agir, 1951).

Quem se aventura por essas páginas, escritas de forma luminosa e, ao mesmo tempo, despretensiosamente simples, descobrirá de forma muito clara a profunda unidade que liga fé cristã e  compromisso social e político de transformar esse mundo. E, sem dúvida, essa pessoa poderá descobrir o segredo que está por trás de cada linha dessa narrativa: a amorosidade que levou esses irmãos a, cada vez, superar todas as dificuldades e avançar mais e mais na direção do objetivo que guia a vida inteira dessa família: mergulhar o mundo no amor solidário. Luiz Alberto é mesmo um andarilho entre duas fidelidades: a Religião e a Política, porque sempre soube ser fiel à vocação divina de ser não apenas caminhante, mas peregrino.

Assim, nós também, “rodeados dessa grande nuvem de testemunhas, deixemos de lado tudo o que nos atrapalha e corramos com perseverança, mantendo os olhos sempre fixos em Jesus, autor e consumador da nossa fé”(Hb 12, 1- 2). 

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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