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​texto,, domingo 04 de novembro 2012

Pobres não! Empobrecidos e roubados!

Essas palavras claras e definidoras me foram ditas por lavradores e gente de periferia de San Juan de Porto Rico no encontro que tive com comunidades e organizações de direitos humanos. Eu tinha sabido que a taxa de desemprego na ilha é uma das mais altas das Américas e  Caribe e ainda que de uma população de menos de quatro milhões de pessoas, mais de 600 mil vivem de uma ajuda social dada pelo governo e quase um milhão não tem nenhuma ajuda e nem trabalho fixo. Como o tema que me pediram era “economia e espiritualidade”, pensei que deveria partir da realidade deles. E comecei dizendo: “Vocês aqui são pobres”. Eu ia continuar: como nós de toda a América Latina. Mas fui interrompido e me surpreendi com um lavrador negro e alto, com a voz de Milton Nascimento me dizer: “Não senhor, não somos pobres. Fomos empobrecidos e roubados!”. É claro que compreendi muito bem o que ele queria dizer com isso, mas preferi pedi que explicasse melhor e ele detalhou:

- Porto Rico é um arquipélago composto de várias ilhas que foi o primeiro ponto do continente desconhecido que os espanhóis quando invadiram a América encontraram. Porto Rico é o ponto mais ao leste do Mar do Caribe e por isso foi o primeiro conquistado e desde então temos sido explorados. A terra é fértil e fecunda, o clima maravilhoso, o solo rico em muitos tesouros, tudo tem tudo para ser rico, mas fomos colônia dos espanhóis até o século XIX e a partir de 1898, somos colônia dos Estados Unidos que ainda têm o desplante de nos chamar de “estado associado”. Nossos filhos são obrigados a entrar no exército americano e fazer guerras do outro lado do mundo. Nossas riquezas todas são exploradas pelos norte-americanos. Todo o comércio grande é dos Estados Unidos e a moeda do país é dólar. Mas, não podemos votar no presidente dos Estados Unidos e nem ter passaporte de cidadãos norte-americanos.

Aquele desabafo me acompanhou e me marcou durante os cinco dias que passei no país. Por várias razões, Porto Rico me parece até hoje a região do nosso continente ampliado que se encontra mais distante e menos conectado aos movimentos sociais dos outros países. Por isso,  como coordenador latino-americano da Asociación Ecuménica de Teólogos/as del Tercer Mundo (ASETT), estou contente de ter passado esses dias em Caiguas e San Juan e procurar estabelecer uma nova relação entre os movimentos sociais dessa ilha maravilhosa e os grupos e movimentos populares do nosso continente.

Como fiquei hospedado em Cáguas, uma cidade do interior e não na capital e fiquei em casa de um padre pobre e de periferia, acabei não tendo a visão dos turistas que vêm aproveitar as praias maravilhosas do Caribe e desfrutar as paisagens paradisíacas de florestas ainda meio intactas e colinas muito verdes que de Cáguas eu via de longe. O que pude foi ouvir as pessoas e entrar em contato com os movimentos sociais.

Na terça feira, almocei com professores da Universidade Evangélica de San Juan que reúne seis Igrejas evangélicas abertas e cujos pastores orientam as pessoas na linha da independência do país e da justiça social. À noite, tive uma conferência que se inseria dentro de um curso sobre Apocalipses bíblicos lidos à luz da América Latina e do Caribe. Não tenham medo do título. Falamos de como os movimentos oprimidos lerem a realidade de forma lúcida e entretanto não perderem a esperança da libertação. O Apocalipse fez isso nos tempos bíblicos. Como conseguir isso hoje em dia???

Notei que as eleições norte-americanas desses dias despertam pouco interesse no país. Seja quem for eleito, será favorável à manutenção da colonização. Os porto riquenhos votarão no mesmo dia nas prefeituras locais e vereadores e responderão a uma pergunta se querem manter a condição de estado associado ou se preferem um status de protetorado norte-americano, dizem, como o Canadá é protetorado da Inglaterra. É claro que os promotores dessa ideia esquecem de dizer que Canadá é um protetorado rico e formado em sua maioria por brancos que há séculos se libertaram... E me dizem os meus amigos porto-riquenhos que no referendo não existe nenhuma pergunta que permita alguém responder: Voto por um país totalmente livre e independente. Isso nem é perguntado e se se reclama, os norte-americanos dizem que a própria população porto-riquenha em sua maioria não quer. Pode ser verdade.  padre Comblin dizia que comumente o oprimido não quer liberdade e independência. Quer apenas um patrão bom e mais humano. De todo jeito, minha função é dizer que se existe Deus – ao menos para os que creem que ele existe – o ser humano, tanto pessoal como socialmente é chamado a ser livre. Paulo escreveu: “Foi para que sejamos livres, verdadeiramente livres que Cristo nos libertou” (Gal 5, 13).

Minha conferência na Universidade Evangélica parece que teve mais sucesso e repercussão do que na faculdade dos dominicanos. Alguém me disse que foi por causa do horário. Na primeira foi às sete da noite e na segunda,  às dez da manhã de um dia de semana. Será que foi por isso? Tomara. De todo jeito, os que foram me disseram ter gostado. Os organizadores contaram 83 pessoas que foi considerado um grupo pequeno.

O encontro sobre economia e espiritualidade para os movimentos sociais foi bom e fecundo no sentido de que eu saí de lá com nome de pessoas de contatos, assinei cartas de solidariedade a presos políticos, assinei uma petição ao presidente dos Estados Unidos para que a marinha norte-americana se retire da ilha de Vieques, onde os norte-americanos prenderam pessoas e bombardearam acampamentos populares.

O passeio no Forte San Juan diante da maravilhosa baía do Caribe é bonito e nos faz mergulhar no passado. O problema é que os turistas vão, acham aquilo tudo muito bonito e até poético, mas como achar poético um canhão que deve ter servido para matar os índios do lugar e como passear sobre um campo de guerra que em épocas antigas foi coberto de sangue? Quiseram que eu passasse lá uma manhã para descansar, mas preferi descansar em casa mesmo. Almoçamos em um restaurante popular um prato chamado Montongo – deve ter sido trazido por escravos negros de Moçambique, me disseram. E também com esse nome, como não ser? É feito de banana cozinhada – banana da terra ou comprida,  amassada com temperos fortes e frango ou camarão ou carne. Eles ainda põem pimenta ao gosto. Eu comi um pouco e sem carne, é gostoso, mas enche demais....

O jornal semanário de oposição Claridad me fez uma entrevista de mais de duas horas e eu confiei. Lavei a alma. Respondi tudo o que me perguntaram. Critiquei o governo brasileiro, falei da situação dos índios kaiowá para que o pessoal daqui ressoar a denúncia sobre o roubo de suas terras, em nome da ASETT (Associação dos Teólogos), comprometi todos os teólogos/as da libertação no movimento pela independência de Porto Rico. Quando perguntado sobre Igreja, disse tudo o que pensava e sem ser menos crítico com a hierarquia eclesiástica do que sou com políticos do Estado. Parece que gostaram e me pediram para a partir de agora publicarem aqui em Porto Rico o meu artigo semanal. Como já escrevo um em espanhol para o jornal Correo del Orinoco de Caracas que nem sempre é o mesmo artigo publicado em português, aceitei. Mais uma vez, de graça, é claro... Para grupos populares, o que fazer?

Vinte e oito horas de viagem, estou de volta a Recife e descanso entrando na luta dos direitos humanos. Vou agora para um encontro com uma juíza ameaçada de morte porque está denunciando 19  policiais militares  de Pernambuco envolvidos com esquadrões da morte no sertão. Porto Rico tem de ser livre e independente. Pernambuco e o Brasil também. 

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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