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Texto para o encontro da partilha, na Igreja das Fronteiras

Conversa sobre o além da vida

A nossa sociedade vive uma contradição. De um lado, evita falar da morte e tenta escondê-la o quanto pode. Do outro, talvez por isso mesmo, acaba estimulando as piores fantasias sobre o além da morte. Cada vez mais a literatura de ficção e o Cinema comercial investem fortunas em filmes sobre vampiros adolescentes e esse selo faz muito sucesso econômico. Embora no Brasil, não haja tradição do Hallowen , o povo dá muita importância ao dia de finados e à visita aos cemitérios. Aí se junta um elemento cultural antigo e a crença religiosa na comunhão com as pessoas queridas que já partiram. De fato, todas as religiões procuram tratar do sentido da vida. Por isso, todas tentam compreender melhor a passagem da morte.

1.    Como as antigas religiões pensam a vida depois da morte

A maioria das religiões indígenas ligada a práticas como o Xamanismo acredita que a realidade em que vivemos tem dois planos: o mundo visível e dentro desse, um universo invisível e espiritual, presente e atuante. Para o Xamanismo, tudo tem espírito. Cada montanha, cada rio, cada árvore e cada animal tem um espírito e os índios aprendem a entrar em contato com esses espíritos. Para alguns povos, quando a pessoa morre, retoma a forma do seu animal totem. Então, se manifesta nos animais ou, em alguns casos, até em árvores. E continuam assim a cuidar da harmonia do universo.

As religiões afro acreditam em um céu que se manifesta aqui na terra. Quando a pessoa morre, vai para o Orum,  mas ao mesmo tempo pode se relacionar com os seus nesse mundo. Várias tradições afrodescendentes dão o maior valor ao culto aos antepassados.

Mais de 2/3 da humanidade acredita em algum tipo de reencarnação. Para as religiões orientais, o renascimento se dá para ajudar a alma a se purificar e evoluir, até o dia em que for mais espiritual e não precisar mais se reencarnar. Algumas religiões do Hinduísmo acreditam na metempsicose. Essa doutrina ensina que as pessoas podem se reencarnar como pessoas, mas também como animais, mais evoluídos ou menos. No Espiritismo Kardecista, a reencarnação faz uma certa síntese da doutrina oriental do renascimento, mas vai além dela. Tradicionalmente, a teologia cristã ensina que a reencarnação é contrária à ressurreição. No entanto, atualmente, muitos teólogos pensam que, se o espiritismo diz que a reencarnação não é um processo permanente e tem como meta a vida plena, a reencarnação pode ser entendida como uma espécie de purgatório purificador que, ainda nessa vida, ou através de diferentes vidas, vá preparando a ressurreição final[1].

A dificuldade maior para aceitar a reencarnação não é porque essa seria contrária à ressurreição e sim por causa da concepção de ser humano que a doutrina da reencarnação pressupõe. Não me compete a mim que não sou espírita querer explicar essa doutrina. Prefiro explicar a concepção de ser humano, de alma e espírito que, hoje, como cristãos, podemos ter.

2 – O ser humano não tem alma. Ele é corpo e alma.

O Cristianismo vê o ser humano como um todo indivisível. Compreende a alma como a energia que dá vida ao corpo. Não se pode pensar a alma como uma substância separada e independente, mas como uma energia única que constitui a pessoa. A noção de energia percorre todo ser vivo. As diferenças se dão na maneira como a energia atua na matéria, ou seja, que configuração toma, ou como se apresenta na matéria. A energia é uma só. Está presente no universo e em cada ser vivo. No entanto, embora todos os seres têm energia, as estrelas são diferentes das árvores e essas são diferentes dos animais e do ser humano.

O termo alma aparece em todas as culturas da humanidade e foi aprofundado na cultura da Grécia antiga como o termo x da equação que liga o ser humano ao mundo, mas não o reduz ao mundo” (...). O termo “alma” (em latim, anima) vem de anemus, vento. “Na Filosofia grega antiga, Platão chamava esse elemento de alma, Aristóteles a denominava de intelecto ativo. No mundo moderno, Kant a chamou de sentimento moral e Hegel de espírito absoluto. 

Existe uma alma vegetativa e uma alma sensitiva. A alma vegetativa é a das plantas. Elas gostam quando são bem tratadas, crescem com certas músicas e se desenvolvem em certos ambientes. A alma sensitiva aparece nos animais. No imenso mundo da vida, entre todos os animais, o mais complexo organismo conhecido somos nós os seres humanos. Existe alguma coisa em nós mais organizada do que os átomos. Nós todos temos uma alma vegetativa e uma alma sensitiva. Temos funções vegetativas como a batida do coração e a digestão. A alma vegetativa aparece no controle do sistema respiratório. Temos uma alma sensitiva como os animais. Como eles sentimos fome, cansaço, o impulso para a reprodução, A alma sensitiva do ser humano se chama caráter, temperamento, psiché. No entanto, temos algo a mais: temos espírito.

3 – Alma e espírito

 “A palavra grega pneuma que se traduz como espírito significa literalmente sopro ígneo, sopro unido ao fogo. Na antiguidade, isso correspondia à noção que a ciência moderna indica com a palavra energia”[2]. A alma é energia, mas o espírito eleva essa energia à categoria de relação com o mundo, com os outros e com nós mesmos. Os animais se relacionam e têm interação com o ambiente através do instinto e, talvez, de uma certa consciência (sobre isso, penso que não sabemos ainda muita coisa), mas parece que nós, humanos, conseguimos tomar uma consciência mais profunda de nós mesmos e do mundo no qual vivemos. A capacidade de compreender o mundo varia de pessoa a pessoa, tanto no plano da intensidade como no fato de que há diversos ângulos de leitura. Cada pessoa tem uma inteligência diferente da outra. Em nós brilha a luz da inteligência. Isso se expressa pelo termo mente que compreende intelecto, consciência, raciocínio, etc e compreende o espírito que assume responsabilidade perante tudo isso e decide viver e transformar o mundo. Passamos das relações instintivas de competição e sobrevivência para relações de amor e cooperação.

A mente vê manifestar-se em si mesma uma forma superior que é o espírito. Uma espécie de “ponta da alma”, uma coisa que as tradições espirituais chamam de “coração”. Isso faz as pessoas criarem e descobrirem coisas novas em todos os planos. Assim se expressa um filósofo atual: “Afirmar que temos alma e espírito significa sustentar que, fundamentalmente ligado ao corpo, o ser humano pode transcender as suas necessidades e vencê-las. O sinal dessa vitória sobre a necessidade aparece nos caminhos espirituais, na criação artística e mais ainda na experiência ética da gratuidade e da justiça, a criação mais alta ”[3].

4 – A alma, o espírito e Deus

Podemos pensar Deus como alguém que existe em si mesmo, mas se manifesta em nós, no mais profundo do ser humano. Deus mora no nosso espírito, ou seja no mais íntimo de nós, no íntimo do nosso ser pelo qual somos capazes de nos relacionar amorosamente, de querer e praticar o bem. Assim, no interior de cada ser humano, se realiza o céu. (Não podemos pensar o céu como um lugar para onde vamos depois da morte). Mas, esse processo de realizar o céu em nós e em torno de nós não é uma coisa instintiva ou natural. É uma vocação universal do ser humano, mas tem de ser descoberta e aprofundada.

O mais profundo do ser é a relação. E é Deus em nós que nos move à relação cada vez mais profunda e mais amorosa. Antes de encontrar a ideia do bem, somos como se fosse um sistema centrípeto. Cada um de nós é dotado de força de gravidade como qualquer outro ente do universo. Só que o centro dessa gravidade não é embaixo, a terra. É o próprio eu.  À medida que nos encontramos com o Bem, ou, falando a linguagem da fé, descobrimos Deus e recebemos a vocação de sermos portadores da divindade, (em qualquer religião que seja), sofremos uma mutação. Começamos a nos tornar um sistema centrífugo, onde o amor e não o egoísmo, a verdade e não o poder, a justiça e não o lucro são a meta. Assim, por vocação, a humanidade é portadora de espiritualidade. 

5 – Desde agora e depois da morte, a eternidade

Em um livro dos anos 80, “A vida depois da morte”, Leonardo Boff escreve: “A ressurreição é como realização completa das capacidades do ser humano em seu corpo e sua alma. É o termo final do processo de humanização, a realização da utopia humana e o florescimento do ser humano revelado, latente no princípio-esperança”. Nessa visão, a ressurreição é algo que ocorre em cada ser humano, mas também no mundo. O mundo, portanto a sociedade e a atividade política e social, é o lugar em que se realiza o céu como plenitude de uma vida ou o fracasso de uma vida que não conseguiu se integrar. A teologia da libertação nos confirma: o único sacramento real é o mundo. Fora do mundo não há salvação. O fracasso desse processo, quando a pessoa não opta pelo processo de amorização, a mitologia antiga chamava de inferno. Junto com alguns teólogos antigos (como Orígenes, no século III) e outros contemporâneos (como Hans Hus von Balthasar), Dom Helder Camara, ainda falando no céu e no inferno como lugares – e ele sabia que isso era como uma parábola -  dizia que se o inferno existe, está vazio. Então, o que existe mesmo é o amor e essa é a nossa vocação. Na 1a carta aos coríntios, Paulo resume isso dizendo que, no final, “Deus será tudo em todos” (1 Cor 15, 28).


[1] - Ver sobre isso o número da revista internacional de teologia Concilium, com o título de Reencarnação ou/ e Ressurreição, 1999.

[2] - SIMONE WEIL, L’Enracinement. Prélude à une déclaration des devoirs envers l’être humain, in Oeuvres, Paris, Gallimard, 1999, p. 1186, citado por V. MANCUSO, p. 57.

[3] - Cf. MANCUSO, V., L’anima e il suo destino, Milano, Raffaelo Cortina Editore, 2007, p 52 p. 96

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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