Hoje, me senti como que tomado pelo espírito do meu mestre Dom Helder e, de um só empurrão, escrevi uma carta aberta a Francisco, bispo de Roma e a Bartolomeu, patriarca de Constantinopla, que, nesse domingo, se encontrarão em Jerusalém.
Sei que, de todo o mundo, várias pessoas têm escrito ao papa sobre os mais diversos assuntos. Mas, pelo que sei, ninguém escreveu uma carta ao papa e ao patriarca do Oriente, juntos. Tomara que esse meu gesto ajude as pessoas a rever sua eclesiologia e a torná-la menos romanocêntrica.
Quem como eu, já apanhou tanto por ter ousado escrever uma carta ao papa (em 2004), talvez não devesse repetir esse gesto, embora, agora, o papa é outro e o espírito da carta também é diferente. De todo modo, obedecemos ao que Deus manda e assumimos as conseqüências.
Aí vai o primeiro esboço da carta: (tradução do italiano que eu ousei escrever).
Camaragibe, 25 de maio 2014
Querido irmão Francisco,
bispo de Roma e primaz da unidade das Igrejas e
Bartolomeu, patriarca ecumênico de Constantinopla,
Sou um monge beneditino que procura viver a sua fé como peregrino junto aos empobrecidos da terra. Dom Helder Camara, bispo que me ordenou padre e foi sempre para mim mestre de vida, me disse antes de morrer: “Não deixe cair a profecia!”. Nesse espírito, tomo a liberdade de lhes escrever essa carta aberta sobre a peregrinação que, nesses dias, vocês fazem à terra de Jesus.
Antes de tudo, lhes agradeço esse gesto profético. Ao retomar o encontro fraterno do papa Paulo VI com o patriarca Atenágoras em Jerusalém, dão um novo sinal de unidade entre as Igrejas do Oriente e a Igreja Latina. Esse novo encontro nos recorda aquela reunião que a tradição chamou de primeiro concilio dos apóstolos de Jesus. Ali, eles decidiram abrir a Igreja aos estrangeiros (At 15). A partir dessa recordação, penso representar grande parte dos cristãos ao lhes agradecer o diálogo simples, humano e amoroso que vocês fazem questão de aprofundar com toda humanidade. Em seu tempo, foi o que viveram, cada um à sua maneira, o papa João XXIII e o patriarca Atenágoras.
Nesse mesmo espírito, há 50 anos, Paulo VI e Atenágoras fizeram o gesto de revogar as excomunhões recíprocas que ainda existiam entre as Igrejas do Oriente e a Igreja Latina. Desse modo, libertaram as Igrejas de um peso do passado que impedia os cristãos de reconhecer nos irmãos de outras Igrejas a presença do Ressuscitado. Agora, temos de ir além dessa libertação do passado. É preciso a coragem de libertar o futuro. Isso significa não só remover os obstáculos ao diálogo, mas fazer do diálogo a forma permanente do nosso modo de ser Igreja. Se, a partir dessa viagem, os senhores pensassem em escrever e assinar juntos uma mensagem ao mundo e mesmo, quem sabe, uma encíclica sobre assuntos urgentes como a atual crise ecológica, dariam importante testemunho de unidade no serviço apostólico.
Certamente, vocês vão orar em Belém, junto ao lugar do nascimento de Jesus e em Jerusalém, no Cenáculo e no Santo Sepulcro. Se Belém nos recorda o nascimento, nos fala também da possibilidade de renascer. Esse gesto ecumênico da peregrinação realizada em comum tem o sabor de um renascimento. Retoma a proposta feita pelo papa João XXIII de voltar às fontes da nossa fé. Os cristãos e todas as pessoas de boa vontade esperam muito do Concílio Pan-ortodoxo que as Igrejas do Oriente estão preparando para 2016. Certamente a proposta do papa Francisco de restituir à Igreja Latina um caráter de maior sinodalidade pode colaborar para que esse Concílio seja uma bela e importante ocasião ecumênica e possa ajudar todas as Igrejas a retomar a práxis evangélica dos primeiros séculos do Cristianismo.
Em Jerusalém, o Cenáculo nos recorda a palavra do patriarca Atenágoras: “A única verdadeira teologia que pode guiar as Igrejas é a teologia eucarística”. (...) “O lugar onde não há separação, mas só um amor imenso, é o Cálice eucarístico, no coração de toda a Igreja”[1]. Seria belo ver o bispo de Roma e o patriarca de Constantinopla lavar os pés um do outro, como testemunho de qual è a fonte do ministério de todos nós, presbíteros e bispos. Um gesto assim indicaria um passo novo no caminho da unidade. Para que essa unidade visível se torne mais efetiva, é importante que a Igreja Católica supere todas as dificuldades e decida entrar como membro normal e pleno do Conselho Mundial de Igrejas.
Ao orar com os nossos pastores diante do Santo Sepulcro, não podemos esquecer que, durante séculos e mesmo em incidentes recentes, muitas vezes, a pedra do Santo Sepulcro tem sido transformada em pedra de escândalo. O próprio lugar da doação da vida se tornou frequentemente motivo de cruzadas, violências e guerras. Por isso, é urgente uma profecia nova. Mesmo se o sepulcro vazio continua sendo para nós um lugar de testemunho, cremos que Jesus Ressuscitado nos espera não na pedra do sepulcro, mas nas Galileias do mundo. E precisamos encontra-lo na comunhão com as vítimas das violências de hoje. Pensemos concretamente no povo palestino, sob permanente ocupação militar e a cada dia sofrendo novas formas de colonização por parte do Estado de Israel. É importante que, em comunhão com algumas comunidades judias que guardam no coração a paz e a não violência, os pastores cristãos ajudem o mundo a levantar o véu que encobre a realidade terrível e opressora que sofre o povo palestino.
Bendito seja Deus por essa viagem que os torna novos peregrinos de Emaús que voltam a Jerusalém. De todas as Igrejas, muitos cristãos se unem a vocês. Sentimos também o coração queimar dentro do peito ao reconhecer o Ressuscitado nas estradas do mundo. As perguntas que, hoje, como pastores, vocês fazem ao peregrino Ressuscitado interpelam a todos/as nós. O modo como, juntos, interpretam as Escrituras trazem uma luz nova a nossos olhos. Na esperança de repartir com todas as Igrejas o pão da comunhão, oramos juntos com vocês a invocação evangélica: “Senhor, fica conosco, porque já anoitece”.
Na alegria de nossa comunhão, confio-me às suas orações e peço que abençoem o irmão menor Marcelo Barros.
[1] - ATENAGORA, CHIESA ORTODOSSA E FUTURO ECUMENICO. Diáloghi con Olivier Clement, Morcelliana, Brescia, 1995, pp. 337.