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Texto, sexta feira, 28 de novembro 2014

Ontem, completei 70 anos. Meus irmãos/ãs e amigos/as organizaram um culto ecumênico na Igreja Anglicana e convidaram  as pessoas as quais estou mais ligadas. Era para ser uma coisa íntima, mas tinha ali mais de cem pessoas. Foi simpático e espontâneo. Principalmente afetuoso. Eu, comovido, tive dificuldade de falar improvisadamente. Preparei então uma reflexão que foi a seguinte: 

Minhas palavras no culto de ação de graças pelos meus 70 anos.

Pois é, hoje, completo 70 anos de juventude.

Os antigos pastores da Igreja diziam que a pessoa nasce velho e pode morrer jovem. Talvez um modo de compreender isso é que o ser humano nasce centrado em si mesmo e, se amadurecer, vai aprendendo a se descentrar. Pouco a pouco, descobre cada vez mais a alteridade como direção de vida. Isso é o que permite a renovação permanente da vida. Esse percurso pode ser vivido através de vários caminhos. Pode ser através da pertença de uma cultura que educa para isso, como é o caso de culturas mais comunitárias, como a dos índios.  Ou pode ser através de uma consciência política. Ela ajuda a pessoa a evoluir de uma alienação que é uma cegueira interior para uma visão crítica do mundo e da realidade. E torna a pessoa solidária com a caminhada da justiça e da libertação. Mas, esse caminho pode também ser vivido pela graça da fé. Parece que esse é o meu caso.

Daqui há um mês, exatamente, 27 de dezembro, há 70 anos, meus pais me levaram à Capela da Fábrica de Camaragibe e ali fui batizado. Meus pais me batizaram e me ensinaram a crescer nesse caminho do batismo. Ali começou esse movimento do nascer de novo e nascer do alto, do qual fala o evangelho que acabamos de escutar: A conversa de Jesus com Nicodemos sobre o nascer de novo.

Não sei dizer exatamente o quanto consegui avançar nesse caminho da renovação interior através da abertura para os outros. Só sei que ainda me falta um longo percurso a fazer e não sei se terei tanto tempo para cumpri-lo. De todo modo, o que posso dizer a vocês é que esse é o motivo pelo qual vivo, é aquilo em que acredito e que, conseguindo ou não, prometo que vou continuar tentando e me forçando a mim mesmo a avançar nessa estrada até o último suspiro.

Como vocês quiseram me dar o presente essa ação de graças e  no idioma da fé ecumênica que é aquela em que acredito e vivo, me sinto como obrigado a esclarecer três coisas para vocês. A primeira é o quanto para mim é necessário agradecer, a segunda é fazer minimamente uma avaliação da minha vida até aqui e a terceira é quais são minhas perspectivas para o daqui para frente.

1 – Dar graças por tudo e em tudo.

Na Bíblia agradecer é salmodiar. O Salmo é expressão de louvor e ação de graças porque ensina a pessoa a se mover a partir do amor e de um compromisso de aliança consigo mesmo, com Deus e com os outros. E os salmos me têm ensinado que tudo o que sou devo aos outros e concretamente a vocês que estão aqui comigo nessa noite.

Olhando aqui meus irmãos, irmãs e minha família quase toda aqui reunida, posso dizer com sinceridade que agradeço a Deus a família que tenho, o exemplo de retidão e simplicidade que recebi do meu pai e da minha mãe. Principalmente agradeço imensamente a eles terem me transmitido o dom da fé. Hoje, a minha família está aqui reunida e parece uma tribo, com irmãos e irmãs, sobrinhos, tios, tias, primos e assim por diante... É bom ter vocês aqui e contar com vocês nesse caminho.

Agradeço a Deus minha família espiritual, os irmãos e irmãs que Deus foi me dando no decorrer desses 70 anos. Aqui tenho amigos que já são amigos a 50 anos, como a irmã Agostinha, monja como eu. São 50 anos de amizade e aliança na busca de um monarquismo renovado. Tenho aqui amigos que são irmãos de fé e de missão: Reginaldo Veloso que me conheceu quando eu tinha nove anos. Pedro Ribeiro de Oliveira e Tereza representam aqui uma comunidade de irmãos e amigos que se reúnem no grupo de teologia Emaús. Aqui tenho irmãos que acompanhei quando jovens na Fraternidade em Olinda. Aqui tenho Ricardo e Malu que, junto com Penha, minha irmã, foram os instrumentos mais concretos através dos quais Deus salvou a minha vida em janeiro de 2009 quando cheguei muito mal no Recife. E Penha, hoje, divide comigo a casa e a vida dela e ela, a dona de casa, a cada dia faz como se fosse eu que mandasse e a casa fosse minha. 

Aqui estão amigos que vieram de Goiânia: Thânia, a melhor assessora de comunicação que eu poderia ter na vida e Robson, meu irmão na tradição dos Orixás. Eles aqui representam vários outros e outras que não puderam vir, como Tê e Clarinha. E nessa celebração temos a comunhão de irmãos amigos da Itália, da Bélgica e de outros lugares do mundo. Aqui sinto a presença de figuras que marcaram minha vida e não estão aqui conosco: Dom Helder, Dom Basílio Penido, meu primeiro abade, Filipe Leddet, meu amigo e que me recebeu em Curitiba, Dom Tomás Balduíno que foi para mim um verdadeiro pai e protetor desde 1977 Esses já estão no céu. Outros continuam na terra, como Pedro Casaldáliga, Dom José Maria Pires, a irmã Agostinha e outros.

Também devo dizer que em 2006, Deus colocou no meu caminho uma pessoa que nunca pensei encontrar e me escolheu para falar em um fórum de 21 mil pessoas: o presidente Hugo Chávez. Ele me chamava sempre de “mi padre pernambucano”. Nele, descobri uma pessoa que fazia da política uma arte de amor. E ele me ensinou o bolivarianismo como caminho de integração latino-americana.   

 Poderia dizer outros nomes e outras influências. Mas, acabo deixando nomes de lado e aí serei injusto. Prefiro simplesmente dizer que cada vez que me senti diante da morte e isso me ocorreu algumas vezes nos últimos anos, disse a mim mesmo que tenho obrigação de fazer tudo para viver, não por causa de mim, mas por vocês a quem amo e a quem devo tanto. De fato, a presença e a força de meus amigos e amigas são para mim tão importantes quanto a minha fé em Deus, que ele não fique magoado comigo e ele sabe que ela é tudo na minha vida.

2 - “Deixar tudo o que ficou para trás...”

Essa é a proposta da carta aos hebreus no começo do capítulo 12. Não é minha tendência natural. Tenho dificuldade de assumir a história como ensinamento e colher do passado as lições para hoje.

Algumas pessoas estranham que eu seja um padre que não tem paróquia e um monge que não vive em mosteiro. Quem acompanhou minha trajetória desde jovem sabe que sempre foi assim. No ano de 1966, eu aos 21 anos de idade e ainda não monge formado, pedia permissão ao abade em Olinda para integrar uma fraternidade com irmãos evangélicos de Taizé.  Fiz a profissão de monge em 68 e logo comecei a morar com jovens. Em 1976, pedi licença para ir ajudar a pequena comunidade do mosteiro de Curitiba. Deus me ajudou e sempre consegui dar esses passos sem romper o diálogo com a instituição. Isso não quer dizer sem sofrimentos e até com alguns conflitos. Mas, sem romper o diálogo. Sou monge sim e sou padre, mas “para fora”, voltado para os que não estão dentro da instituição. Tenho consciência de que Deus me pede isso. Sou diferente, não por desprezo dos outros ou descompromisso com a ordem religiosa ou a Igreja. Ao contrário, por amor e para ajudá-la a se converter o tempo todo, como exijo em primeiro lugar de mim mesmo.

Uma coisa que tenho de agradecer a Deus é que, fora de um único incidente que vivi – nos últimos tempos no mosteiro de Goiás, sempre consegui dar os passos necessários a partir do diálogo. E mesmo no caso de Goiás, nunca rompi, nunca me neguei a dialogar e continuo a relação com os envolvidos na história. Por isso tenho de ser mais exigente comigo mesmo sobre a capacidade de dialogar.

Então, quero aqui atualizar o meu compromisso – o voto que fiz como monge de me converter permanentemente, o tempo todo e todo o dia, tanto na renovação de minha mente, como disse Paulo na carta aos romanos, como na direção concreta que dou à minha vida. Prometo que não cederei nunca ao desânimo e menos ainda ao acomodamento e à mediocridade. Quero ser sempre testemunha do Espírito que é jovem e transformador, inquieto e revolucionário.

3 - Perspectivas

   

Hoje completo 70 anos de juventude, mesmo num corpo caindo aos pedaços. Como todo mundo, tenho dificuldade de aceitar o envelhecimento que vai chegando inexoravelmente. Mas, lá dentro de mim, eu sei o segredo de viver isso. Dom Helder pedia a Deus: “Faze que eu envelheça como um vinho que quanto mais velho mais saboroso. Não me deixe virar vinagre que envelhece azedando”.

Qual será o futuro próximo, não sei. Mas, se eu morrer hoje, amanhã ou depois de amanhã, vocês tenham certeza de que eu morro feliz porque vivo feliz. E sendo feliz, feliz até o último suspiro, eu vou até o fim de minhas forças nessa missão de tornar a vida mais feliz, as pessoas mais amorosas e o mundo mais justo e livre. Dou minha vida por isso porque compreendo isso como uma exigência absoluta da minha fé cristã e do meu seguimento a Jesus.

Cecília Meireles em um de seus poemas fala do envelhecer como o entardecer da vida. Ela escreveu:

“Este odor da tarde, quando começa o cansaço dos homens

Quando os pássaros têm uma voz mais longa, já de despedida,

Declina o sol, esta é a notícia que a terra sente,

E então, o odor da terra é uma exalação da saudade,

Um suspiro de consolos, também

e o orvalho que as plantas formam, parece igual à lágrima,

e cada folha nas árvores, é um outro rosto humano”[1].

É a renovação permanente do nosso ser e da vida que nos é oferecida através dessa comunhão profunda de amor entre nós e com a natureza.


[1] - citado por RUBEM ALVES, As cores do crepúsculo, Campinas, Papirus Ed., 4a ed. 2003, p. 62.

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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