IHU On-Line – Como trazer a problemática do clima para dentro das igrejas, da espiritualidade e da vida da sociedade?
Marcelo Barros – As igrejas cristãs e quase todas as religiões se expressam pela liturgia, pelo ato de se reunir e celebrar. E estas celebrações são atos de comunhão. É importante que se explicite mais profundamente a dimensão ecológica e cósmica desta comunhão. Para dar um exemplo, em todas as celebrações eucarísticas, a Igreja Católica e a Igreja Anglicana e outras cantam: “Santo, Santo, Santo é o Deus do universo. O céu e a terra estão cheios de tua glória”. Mas ninguém explicita o que significa concretamente confessar que a terra e os céus estão cheios da glória, isto é, da presença divina. Então, é tudo uma questão de educação e de sensibilidade que devemos intensificar.
IHU On-Line – E por que isso não foi feito até agora?
Marcelo Barros – As igrejas vieram de culturas antigas nas quais as comunidades judaicas e cristãs viviam em meio a povos que adoravam a natureza. Por isso, tanto a Bíblia como a teologia que surgiu evitou, o quanto possível, salientar esta presença divina nos elementos naturais e sublinharam mais a presença e a intervenção divina na história. Mas nunca negaram isso. O salmo 19 começa dizendo: “Os céus proclamam a presença divina (a glória de Deus)”. E o salmo 8 é fruto de uma contemplação da natureza em uma noite de luar. Hoje, o diálogo com as religiões indígenas e afrodescendentes que adoram o Mistério divino presente na Terra, na Água e em todos os elementos do Universo podem nos ensinar muito sobre esta espiritualidade ecológica.
IHU On-Line – Como o senhor relaciona a questão da ecologia e da espiritualidade?
Marcelo Barros – A Espiritualidade mais profunda é a busca da intimidade com o Mistério divino. Onde podemos buscar esta presença divina? Em nós mesmos, uns nos outros, na natureza (diz a Bíblia: na criação que continua e é sempre atual) e na história. Então, a Ecologia não é somente a ciência da interligação entre todos os seres vivos e todo o Universo, mas é também a descoberta desta amorosidade que permeia tudo e está presente em tudo. Então, é importante a ciência ecológica, a técnica ecológica, a política ecossocial, mas a raiz de tudo isso deve ser uma cultura, ou chamemos claramente, uma espiritualidade ecológica. Não se trata em si de uma espiritualidade religiosa. Pode ser e todas as religiões deveriam desenvolvê-la e explicitá-la mais. Entretanto, pode ser também simplesmente humana e laical: uma cultura de cuidado e amorosidade com todo ser vivo e com o Universo ao qual temos consciência de pertencer.
IHU On-Line – De que outras formas as igrejas podem se envolver com a questão do meio ambiente?
Marcelo Barros – Há dez anos, Bartolomeu I [patriarca de Constantinopla e primaz das Igrejas ortodoxas] instituiu o dia 1º de setembro como “festa litúrgica da Espiritualidade Ecológica”. Como a liturgia é o memorial dos atos divinos, no dia 1 de setembro, as igrejas orientais são chamadas a reavivar e atualizar o ato de amor divino pelo qual o Universo foi criado. E assim como celebramos a Páscoa como memorial da ressurreição do Cristo, no dia 1º de setembro celebramos a permanente ressurreição de toda criação como ato do Espírito Divino. Penso que as Igrejas todas deveriam incluir a Ecologia na catequese, na sua ética e na sua teologia.
Há anos, em um programa de televisão, um pastor neopentecostal deu um chute em uma imagem de Nossa Senhora. Bispos, padres e fiéis católicos reagiram fortemente em todo o Brasil. Houve manifestações de desagravo e a reação foi tal que o pastor teve de se retratar. Todos os dias, há pessoas que não só chutam uma imagem feita de madeira ou barro, mas destroem a imagem divina inscrita na natureza. A cada ano queimam quase 30% da floresta amazônica, jogam venenos nos campos, poluem os rios e o ar. Até aqui, a maioria das igrejas não percebeu que este tipo de crime é uma blasfêmia e um atentado contra a obra divina muito maior e mais perigoso do que chutar uma imagem que representa uma santa que amamos. No sentido contrário, quando o governo Lula decidiu pela transposição do rio São Francisco, Dom Luis Cappio e muitos companheiros e companheiras das pastorais populares entraram em jejum de solidariedade e comunhão com o rio. Isso foi uma profecia importante para todas as igrejas e para o mundo inteiro.
IHU On-Line – O que é preciso fazer para que governos rompam com a lógica do sistema capitalista?
Marcelo Barros – Os governos representam a população. Se nós criarmos uma consciência coletiva de que este sistema é iníquo e assassino das pessoas e da natureza, é impossível que os governos continuem investindo neste sistema. Quando em 2001, o Fórum Social Mundial começou protestando contra o neoliberalismo e proclamando que “outro mundo é possível”, quase todos os governos do continente latino-americano defendiam abertamente o neoliberalismo. Hoje, depois da crise sistêmica do capitalismo, quase nenhum governo defende mais claramente o neoliberalismo e os que defendem, o disfarçam. Ao mesmo tempo, na América Latina, estão surgindo novas formas de socialismo mais indígenas e democratas que mostram que, de fato, outra lógica e organização sociais são possíveis e urgentes.
IHU On-Line – O que é a teologia eco-feminista? O que podemos aprender com ela?
Marcelo Barros – Antes estávamos falando do capitalismo. O sistema que há séculos oprime a natureza é o mesmo que oprime a mulher. A cultura de dominação que ensina o ser humano não a conviver respeitosamente, mas a explorar a natureza é a mesma cultura patriarcal que sempre defendeu uma espécie de superioridade do homem sobre a mulher. Então a luta contra a dominação da natureza está ligada à luta pela libertação da mulher. Isso é o Ecofeminismo e é uma conquista da teologia para todos nós, homens e mulheres. No Brasil, nossa irmã e companheira Ivone Gebara foi a primeira teóloga brasileira que chamou a atenção disso em seu belo livro Teologia Ecofeminista (São Paulo: Editora Olho d´Agua, 1990).
IHU On-Line – As mulheres protegem a biodiversidade mais do que os homens?
Marcelo Barros – Parece artificial dizer que sim. O que podemos dizer é que a sensibilidade feminina pode levar a isso. Por exemplo, há pesquisas históricas que mostram que as culturas matriarcais (governadas por mulheres) fizeram muito menos guerra do que as patriarcais (dominadas por homens) e todos sabemos que desde a antiguidade e, principalmente, hoje, as guerras são elementos fortíssimos de destruição da biodiversidade. O que precisamos é de mulheres que não entrem simplesmente no mesmo sistema patriarcal e, sim, contribuam com a humanidade com o jeito de ser próprio da mulher. Na Inglaterra imperialista, uma mulher como Margaret Thatcher, apesar de ser mulher, não contribuiu com a transformação do sistema. Ao contrário, aprofundou-o. Mas as mulheres do MST que, há alguns anos, no Rio Grande do Sul, ocuparam um laboratório de sementes transgênica de uma empresa multinacional e destruíram as sementes fizeram um ato profético de defesa da biodiversidade.
IHU On-Line – A formação de um monge privilegia esse outro olhar mais atento para o meio ambiente?
Marcelo Barros – Monge vem de uma palavra grega (monos) que significa uno ou unificado. Então ser monge é caminhar para a unificação interior e isso se faz em geral pela busca da unidade com os outros, tanto irmãos da humanidade, como os outros seres vivos em uma fraternidade universal. Raimon Panikkar, nosso irmão teólogo catalão, há pouco falecido, ensinava que esta dimensão de monge está presente em todo ser humano. De alguma maneira, toda pessoa busca esta unificação interior. Toda pessoa tem algo de monge ou monja. Hoje, é a Ecologia que chama a atenção para esta interligação e unidade que existe entre todos os seres do universo. Então há uma relação muito profunda entre a arte de ser monge e a espiritualidade ecológica.
Na Idade Média, Francisco de Assis viveu profundamente isso. Na Rússia do século XIX, o santo monge Serafim de Sarov vivia na floresta. Quando encontrava um animal que fosse um urso ou um pássaro, se inclinava diante dele e dizia: “De fato, Jesus ressuscitou e estou vendo um sinal disso!”. Então, eu digo: Todos nós somos chamados a ser monges no sentido de buscar esta unidade do nosso ser interior e na relação de amor e unidade com todos os seres humanos e com a natureza. O trabalho do IHU é um testemunho deste tipo de espiritualidade monástica e ecológica em seu sentido mais profundo: transformador e de desenvolver uma cultura de amor e de cuidado universal.