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Tornar nossa fé profética e matricial

2º Domingo da Quaresma: Mc 9, 2- 10. 

 

Tornar nossa fé profética e martirial

 

 

Neste 2º domingo da Quaresma (ano B), o evangelho de Marcos (9, 2- 10) nos traz a cena que, comumente, se chama “transfiguração” de Jesus. Marcos conta essa cena no contexto do caminho de Jesus para a sua cruz. O texto começa dizendo: “Seis dias depois...”. Seis dias depois do dia no qual Jesus adverte aos discípulos que o seu caminho era de enfrentamento às autoridades de Jerusalém e tinha como resultado a morte na cruz. Os discípulos o reconheciam como consagrado de Deus (Cristo), mas, exatamente por isso o viam como sendo sempre poderoso e vencedor. De modo algum, aceitavam que ele caminhasse para a cruz que representava fracasso e derrota. 

A compreensão comum que a cultura judaica popular tinha sobre o Messias era de um líder que Deus enviaria para restaurar a realeza de Israel, purificar o templo e renovar a aliança de Deus com o seu povo. No entanto, conforme os evangelhos, Jesus se negou a ser rei ou chefe. Não queria purificar o templo e sim abolir (Chegou a dizer: Destruam esse templo e eu refarei outro – se referindo ao templo do seu corpo). E quanto a Deus, vivia uma relação com Deus muito diferente de tudo o que os discípulos e discípulas podiam compreender. 

Mesmo 30 ou 40 anos depois da paixão de Jesus, a comunidade de Marcos continuava com o mesmo problema. Para muitos cristãos, a fé era reduzida ao religioso. As pessoas queriam uma religião de milagres. Veem Jesus como líder que realizaria sua missão pela vitória contra os adversários e pela vitória do poder religioso. Jesus rejeitava isso como tentação. e disse a todos: “Quem não assumir a Cruz como caminho de vida e de missão no mundo não pode ser meu discípulo”

Ao dizer isso, não estava pedindo a ninguém para gostar de sofrer. Deus não gosta de nos ver sofrer. O que Jesus dizia era que deveria cumprir sua missão, não como Messias ou filho de Deus e sim como simples homem, servo sofredor, cuja solidariedade ao destino dos mais pobres e explorados o levaria a sofrer o castigo que o império infligia aos servos rebeldes (a cruz). 

Hoje ainda existem cristãos que vivem uma espiritualidade que separa a fé do compromisso social. Chegam a pensar que a Campanha da Fraternidade prejudica a Quaresma, ao trazer os problemas sociais e políticos como assuntos que nos desafiam no caminho da conversão. 

 

Marcos conta a cena da transfiguração para responder aos problemas da comunidade cristã da época. Até hoje, nas Igrejas, precisamos testemunhar que cremos em um Deus que é Amor e fonte de todo amor e não um Deus todo-poderoso, amigo de seus amigos e cruel para quem não lhe obedece. Do mesmo modo, a própria figura de Jesus também tem de ser revista.  

Durante séculos, a maioria dos cristãos na Igreja achou normal usar o nome de Jesus para conquistar povos e colonizar. Hoje temos dificuldade de compreender como padres, bispos e pastores, mesmo pessoas santas, conviveram com a escravidão negra e indígena. Provavelmente, no futuro, as pessoas terão  dificuldade de compreender como nós, cristãos de hoje, aceitamos conviver com as imensas desigualdades sociais, com o racismo estrutural da sociedade, com a violência em todas as suas formas. Até hoje, muita gente acha que isso não tem nada a ver com a fé. 

 

Jesus chamou os três amigos mais íntimos para fazer deles testemunhas da transfiguração. A cena é impressionante. Jesus leva a um alto monte Pedro e os dois irmãos, filhos de Zebedeu. Eram os três apóstolos mais claramente identificados com uma Igreja judaica e com a esperança messiânica de tipo popular judaica. Enquanto eles estão no monte com Jesus, conforme Marcos, embaixo da montanha, os outros discípulos discutem com os escribas (professores da Lei) e não podem curar um menino surdo-mudo que um pai, pobre e angustiado veio pedir que curassem (Mc 9, 14 ss). 

Aquele Cristo que Pedro, Tiago e João veem envolvido da presença divina e cheio de luz é o Jesus de Nazaré que se revelou a eles como pobre, impotente e candidato a morrer na cruz. Por estarem ainda muito presos à cultura religiosa, Pedro propõe construir três tendas, como era costume na festa litúrgica das Tendas e ficarem ali no monte em uma espécie de êxtase carismático. Não lhes importavam os outros do grupo lá embaixo em conflito com os religiosos e incapazes de curar. 

Mas, Jesus os levou para o monte afim de lhes revelar qual era o projeto divino. Que carinho e cuidado com seus amigos mais íntimos. O fato deles verem ao lado de Jesus, as figuras de Moisés e Elias é significativo. Mostra que eles devem ver a experiência de Jesus como a Bíblia conta o que aconteceu a Moisés e a Elias. Ambos tiveram de romper com um tipo de visão de Deus: a idolatria do bezerro de ouro no caso de Moisés (Ver Ex 32 e 33). Elias invocava  o Deus dos exércitos. No mesmo monte da aliança do Êxodo, o Horeb, Deus só se revelou a ele quando o profeta conseguiu ver a presença divina no silêncio de uma brisa da tarde. Elias que antes invocava fogo do céu contra seus adversários, teve de se despir do poder, de qualquer instinto de violência e mudar a própria forma de ver Deus para cumprir a missão social e política a qual o mesmo Deus o enviava  (1 Rs 19). 

 

Do mesmo modo, agora, ali no monte da transfiguração, Jesus retoma essas experiências. No contexto do evangelho, os discípulos também eram testemunhas de um fracasso de Jesus na Galileia. Também estavam em conflito com ele, porque não aceitavam que Deus deixasse que o seu Messias fosse ameaçado de morte e não fizesse nada para impedir a sua morte. 

Ali, aos três discípulos renitentes e teimosos em permanecer em uma religião ligada a milagres e ao poder, Deus declara: Este é o meu Filho amado. Escutem-no. E pronto. Assim, Deus confirma e revalida a palavra que Jesus tinha dito sobre o caminho da cruz como sendo o único caminho necessário de fé e de missão que ele aceita viver.

O Cristianismo tradicional interpretou isso no sentido sacrificial. Conforme essa visão, Jesus precisava morrer para cumprir um sacrifício oferecido a Deus. Esse modo de viver e compreender a fé não vai além da religião. Apenas, substitui o Judaísmo do templo e da sinagoga pelo Cristianismo das catedrais e do direito canônico. A transfiguração de Jesus propõe outro caminho de fé. Não este da religião sacrificial e cultual. 

 

Hoje a nossa fé está desfigurada pela incoerência e separação entre fé e vida. Ser testemunhas da transfiguração é aceitar contemplar a luz divina presente nas relações ecumênicas e no caminho da unidade. É ver a glória de Deus presente na figura do Cristo que enfrenta os professores da Lei e os religiosos do templo, assim como os governadores dos impérios atuais. 

Atualmente, um desafio para a fé é não permitir que o nome de Deus seja usado para legitimar a iniquidade. O Estado de Israel não tem direito de usar a Bíblia e o nome de Deus para legitimar o seu racismo e cometer um genocídio contra o povo palestino. As Igrejas cristãs não têm direito de usar o nome de Deus para permitir que pastores e líderes defendam no Congresso pautas como o latifúndio, o armamentismo ou o projeto de um Brasil pentecostal que não respeita a pluralidade cultural e religiosa. 

A transfiguração revela que só podemos atingir a intimidade de Deus no cuidado uns dos outros e da mãe Terra e no tratamento das chagas dolorosas que ferem a vida humana hoje. Como o apóstolo Paulo escreveu: “Ele transformará os nossos frágeis corpos mortais para serem semelhantes ao seu corpo glorioso” (Fl 3, 21). 

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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