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Transformar nosso olhar

                  Na tradição litúrgica da igreja Latina, o 4o domingo da Quaresma se chama o domingo da Alegria (Laetare) por causa do cântico de entrada que junta uma antífona do profeta Isaías (Alegrai-vos com Jerusalém) com o salmo 122 (Alegrei-me com o que me foi dito: Vamos à casa do Senhor). O que está por trás dessa alegria é a proximidade da Páscoa. Até hoje, posso confessar que, na minha vida, isso tem uma influência que eu chamaria de terapêutica muito forte. Uma vez, um companheiro padre me interpelou: Não há uma certa alienação em você gostar tanto de celebrar a Páscoa quando o mundo vive ainda uma cruz tão dura e perversa? E eu respondi: Mas é justamente por isso que eu preciso celebrar a Páscoa, para manter acesa a esperança da ressurreição e de certa forma antecipar em tudo o que é possível a energia pascal de uma vida nova. 

              Nesse domingo, o evangelho lido nas comunidades católicas, anglicanas e de outras Igrejas históricas é João 3, 14- 21. Ele é tirado da conversa de Jesus com Nicodemos, o chefe dos judeus, como diz a comunidade joanina. O encontro se dá à noite e o diálogo é difícil. Jesus propõe nascer de novo, nascer do Espírito e o mestre Nicodemos reconhece que não compreende nem parece querer aceitar. Jesus fica falando sozinho e nesse contexto, ele diz as palavras do evangelho que lemos hoje. É preciso que tiremos dessas palavras uma boa notícia e um novo chamado de Deus. 

                 Na história antiga do povo, havia a tradição de que no deserto a caminho da terra prometida, os hebreus tinham desconfiado de Moisés e de Deus (Foi para que morramos de fome e de sede nesse deserto que vc nos trouxe para cá). Ao passarem por um local, havia muitas serpentes venenosas, muitos deles morreram. O povo achou que tinha sido um castigo de Deus e pediu perdão pela desconfiança. Deus mandou Moisés levantar uma serpente de bronze e quem era picado por uma cobra olhava para aquela serpente e era curado. (Livro dos Números 21). 

                A Serpente era uma divindade cananeia. Pelo que lemos, Deus aceitou a crença cananeia, respeitou a religião do povo desde que ela libertasse, curasse e não ao contrário matasse. No seu tempo e na conversa com Nicodemos, Jesus diz que a sua paixão e cruz será como aquele episódio antigo da serpente. Uma coisa em si má e problemática, Deus transforma em motivo de cura e salvação. E ele dá a explicação disso: Deus ama tanto o mundo que lhe entrega o seu Filho único... 

                     Há duas formas de compreender essa palavra de Jesus erradamente. A primeira é que o Pai entrega ao mundo o seu filho como se o Pai quisesse ou precisasse que ele fosse sacrificado... Deus não quer a cruz. O que ele faz é como no caso da serpente de bronze transformar a cruz - a morte de Jesus - provocada pela opressão do mundo em sinal de salvação. No sentido de que ele nos chama a transformar mesmo o mal, a opressão e a situação sem saída que às vezes temos a impressão de viver em energia de libertação e de cura. Isso tanto no plano pessoal (interior), como no plano social e político. Nesses dias, estou aqui em Salvador para o 13o Fórum Social Mundial cujo tema é "Resistir é transformar". 

                    A palavra do evangelho fala também em que quem não crê já está condenado e isso pode ser compreendido como se Deus condenasse a alguém ou mesmo as pessoas fossem forçadas a crerem se não seriam condenadas. Compreender assim é contra a honra de Deus. Ele seria tão ruim e mesquinho que para ser seu amigo, as pessoas teriam de ser obrigadas. O que de fato o evangelho está dizendo é que a salvação do mundo está nas diversas manifestações da cruz que ocorrem sempre. Não a cruz devota do conformismo reduzido ao religioso e ao simbólico. Mas, a cruz ocorrida na luta da vida. A cruz das mulheres na luta por sua promoção. A cruz das comunidades indígenas e quilombolas que resistem. A nossa luta para implantar no Brasil uma verdadeira democracia e justiça. A luta pelo direito de defesa de pessoas condenadas por indícios e por convicções ideológicas dos juízes que se sentem donos da justiça... Crer nessa manifestação da cruz e ver Jesus presente nelas nos dá força de lutar. Não crer nos condena porque não nos leva no caminho da libertação e da vida... 

                  Ao meditar nesse evangelho, devo pedir perdão a Deus quando, como o povo hebreu no deserto tenho a tentação de desanimar diante das provações e quando pareço desconfiar da presença amorosa de Deus conosco na luta dos pequenos. E dou graças por tantas testemunhas dessa fé no meio da luta... Minha experiência tem sido como é importante a amizade e a comunhão afetuosa dos companheiros e companheiras nessa caminhada no deserto da luta hoje. Como o carinho dos irmãos e irmãs tem sido força de uma ressurreição antecipada. Só posso renovar meu compromisso de ir até  nesse caminho até o fim de minhas forças celebrando as Páscoas que Deus nos permitir celebrar no meio de todas as paixões e cruzes da vida e na trilha da Páscoa que não tem fim.      

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Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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