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"Um estranho no caminho"

Marcelo Barros

Este foi o título que o papa Francisco deu ao segundo capítulo da encíclica Fratelli Tutti, no qual ele comenta o evangelho proposto para este domingo. É a parábola do samaritano que socorre o homem ferido na estrada de descida entre Jerusalém e Jericó (Lucas 10, 25- 37). Essa página do evangelho é das mais queridas pelas Igrejas da caminhada na América Latina.  

O evangelho de Lucas coloca a cena do encontro de Jesus com o professor da Bíblia e a parábola do samaritano no capítulo 10, no qual Jesus manda os discípulos em missão. Portanto, o agir como samaritano que socorre a pessoa ferida é elemento essencial da missão. Nos versículos anteriores, Jesus tinha dito que Deus revela os seus segredos aos simples e pequeninos que o acolhem e compreendem, enquanto os grandes e entendidos do mundo os rejeitam (Lc 10, 21- 24). E aí vem imediatamente essa cena na qual um professor da Bíblia, portanto um que se considerava sabido e importante, pergunta uma coisa básica.

Hoje, a pergunta do professor de Bíblia equivaleria a alguém que pergunte: “Qual o sentido da vida? Como posso dar à minha vida de homem ou de mulher um sentido que a torne feliz?”.

Jesus responde de um modo diferente. Ele não entra na discussão exegética sobre a interpretação do texto. O que ele faz é perguntar ao professor, mas também a nós hoje como cada um/uma de nós compreende o texto. Então, o homem recita a oração do Shemá Israel que quem é judeu ou judia recita ao menos uma vez por dia. “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração...” é o primeiro verso da oração inspirada em Dt 6, 5 e unida a Lv 19, 18 que liga o amor ao próximo ao amor divino. Jesus concorda e conclui: então, pratique isso e está resolvido.

Apesar de que Jesus tenha aprovado a resposta do escriba, esse se sente meio repreendido e tenta uma escapatória no estilo da casuística judaica: quem é meu próximo? Ou até que ponto, sou obrigado a esse amor?

Jesus responde colocando-o diante de um fato. Alguém (homem ou mulher) foi ferido e está caído na estrada. Como Jerusalém fica a 750 metros de altitude e Jericó a 350 m. abaixo do nível do mar, a descida é muito abrupta, cheia de despenhadeiros e era um caminho meio deserto. Aconteciam muitos assaltos. O sacerdote e o levita eram religiosos. Passam por ali e não se que aquilo tivesse nada a ver com eles. Hoje, na Igreja e em muitas religiões, muita gente lamenta as violências do mundo, mas acham que não têm nada a ver com isso. Afinal, religião não é pronto-socorro, nem hospital... Já o papa Francisco comparou a Igreja com o que ele chamou de “hospital de campo”.

O professor da Bíblia perguntou como muita gente de Igreja pergunta hoje em dia até que ponto é o caso de se envolverem em questões sociais. Há padres católicos e pastores evangélicos que, hoje, perguntam: Até que ponto a Igreja deve se inserir em questões sociais? Até que ponto precisa entrar em questões políticas? Não seria muito melhor ficar só no plano espiritual? Seria como se o mestre da lei tivesse dito para Jesus: amar a Deus sobre todas as coisas, tudo bem. É nossa fé. Mas, essa história de amar ao próximo, para que? Até que ponto? Quem é meu próximo?

Jesus inverte a pergunta que o professor da Bíblia lhe faz. Jesus não respondeu à pergunta: quem é meu próximo. Ele pergunta: Na história do samaritano, quem foi o próximo dele? Isso significa: O que interessa não é saber quem é seu próximo e sim de quem você se torna próximo.

Gustavo Gutierrez dizia: “A questão é que o próximo não é a pessoa que entra na minha estrada, mas a pessoa em cuja estrada eu me encontro”. É uma reviravolta na perspectiva. Quem define qual é a missão ou se eu devo me envolver  não é a minha vontade, nem alguma teoria. É a necessidade concreta de quem precisa. O critério é a realidade. Não se trata apenas de dar uma esmola. O texto diz que o samaritano teve suas entranhas revolvidas de compaixão para com o ferido. O verbo grego usado pode ser traduzido: as entranhas se moveram dentro dele. É algo sentido e sofrido.

No mundo atual, o problema é que não se trata apenas de alguém ferido, que corre risco de vida e sim de mais de um bilhão de seres humanos que vivem na linha da pobreza extrema. Grande parte da humanidade está ferida e à margem da estrada da vida, vítima do tipo de organização social que os poderosos dão a este mundo. No Brasil, mais de 20 milhões de pessoas vivem a insegurança alimentar e estão na pobreza extrema.

Ainda hoje, sacerdotes e levitas continuam passando na estrada e deixam os feridos à margem do caminho. Não param e não socorrem. Hoje, muitos ainda defendem que religião nada tem a ver com ação social. Há muitos que não apenas não param para socorrer o ferido, como até dão o seu apoio e o seu voto aos que exploram e massacram o povo. Atualmente, no Brasil e em vários países do mundo, a extrema direita recebe votação expressiva de pessoas que se dizem de Deus mas votam nos opressores e contra os oprimidos. Essa declaração de voto no ódio, na violência e no sistema baseado na desigualdade social é pior do que os assaltantes que atacam diretamente o homem ferido.

Hoje, com os pobres, também está agredida e ferida a mãe-Terra, a água e a Vida no planeta. O jeito eficaz de socorrer o povo e a Terra assaltados na estrada da vida tem de ser inserção efetiva nos movimentos e lutas sociais. A solidariedade incondicional tem de tomar a expressão de uma luta coletiva para mudar as estruturas injustas do mundo. Viver essa inserção solidária é a forma como podemos escutar hoje a palavra de Jesus: O que fizestes a cada um dos pequeninos em meu nome foi a mim que fizestes.

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Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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