Vida comunitária nos Mosteiros: o que só a dor ensina
Evidentemente, quem lê percebe que há divisões e dizem respeito ao problema do poder e da relação entre as pessoas. Mais do que isso a nota não esclarece. Um amigo italiano me mandou a nota do La Stampa desta terça-feira, 27 de maio de 2020, com a declaração de Enzo Bianchi revelando que estava saindo sem saber exatamente as causas. Além dele, fundador da comunidade, também são obrigados a abandonar Bose a irmã Antonella Casiraghi, que era responsável da fraternidade feminina e dois irmãos: Lino Breda, secretário da comunidade e Goffredo Boselli, responsável da liturgia.
Certamente, há diversos modos de ler essas notícias. Há quem lê por mera curiosidade de saber as últimas fofocas de mosteiros e conventos. Na Itália e no mundo, esta notícia não teria tanta repercussão, se Enzo Bianchi não fosse um teólogo e espiritual respeitadíssimo, com muitos livros escritos, colunas semanais em jornais e programas na televisão italiana.
De fato, os mosteiros e comunidades monásticas são bens da Igreja e da humanidade. Por isso, o que neles se passa interessa a todo mundo. É pena que as pessoas que se põem a discutir o assunto de uma parte ou da outra, dificilmente façam algo para ajudar concretamente a comunidade em conflito. Posso afirmar isso por ter visto pessoalmente uma comunidade, unida e sadia, em pouco tempo, se autodestruir, sem que ninguém de fora tenha sido mediador/a da paz e da reconstrução da unidade.
Há trinta ou mais anos, conheço o mosteiro de Bose e estive lá algumas vezes. Embora não sejamos amigos, conheço Enzo Bianchi e gosto de muitos dos seus escritos. Conheço também outros irmãos da comunidade, como Lino, Luciano (o atual prior) e o padre Giancarlo Bruni.
Pessoalmente, vejo o problema em dois níveis: o pessoal, ligado às pessoas e à fragilidade humana. O outro é estrutural e é ligado ao modelo de vida consagrada que temos hoje. Mesmo me situando fora e não sabendo de nada do que ocorreu lá, conheço suficientemente mosteiros e conventos para concluir que uma doença que afeta todo o modelo atual de vida monástica é a questão do poder hierárquico. De fato, a tradição espiritual monástica, cristã e de outras correntes, ensina que a graça de ser monge (ou monja) se recebe de um pai ou mãe espiritual. Assim, o abade ou prior exerce uma função importantíssima. Não é apenas administrador ou coordenador da casa ou da província. É alguém que orienta interiormente as pessoas. Tem função semelhante a uma parteira do Espírito, que acompanha o nascimento e crescimento espiritual de cada um/uma a ele ou ela confiado/a. É diferente do que, antigamente, se chamava de “diretor espiritual”. Esta paternidade ou maternidade espiritual só ocorre verdadeiramente se, desde o começo, o/a orientado/a pode ser livre. Se não há a liberdade de filho ou filha de Deus não há caminho espiritual cristão. A autoridade espiritual é carisma. Não pode ser apenas cargo institucional.
Atualmente, o papa Francisco tem repetido que o clericalismo é uma praga e mesmo um câncer. Falta dizer que enquanto o ministério for visto como hierarquia (poder sagrado) não se escapa do clericalismo. No modelo hierárquico, tanto quem exerce o poder, como quem tem de se submeter são vítimas de um modelo que adoeceu e adoece a todos, a quem manda e a quem se submete.
No caso do mosteiro de Bose, o fundador Enzo Bianchi não é padre ou clérigo. Também certas madres superioras que concentram poder em alguns conventos não são clérigas. Mas, exercem do mesmo modo o poder hierárquico. Em um dos seus livros, o padre José Comblin chega a afirmar que a liberdade é o que caracteriza absolutamente a vocação cristã. Sem se caminhar para a liberdade interior, não há como ser cristão/ã[2].
O modelo tradicional de vida religiosa na Igreja Católica não nos educou para isso. No atual modelo das congregações e ordens, mesmo em grupos considerados abertos e avançados socialmente, a dimensão jurídica parece mais importante do que a espiritualidade.
Em qualquer família humana há conflitos e, às vezes, os conflitos parecem irresolvíveis. Nem por isso, a solução é excluir filhos ou irmãos. Sem entrar em outros méritos, por princípio, lamento a intervenção do Vaticano e a solução que foi dada de excluir pessoas, principalmente de irmãos que construíram a comunidade e ali viveram por mais de 50 anos. Espero que, na preparação do sínodo sobre sinodalidade, se consiga ver claro que este modelo de Igreja é de Cristandade e já fez mal suficiente no mundo.
Sei por experiência pessoal que, quando uma comunidade abre a porta da exclusão, depois é muito difícil fechá-la. Agora foram estes. Amanhã, serão outros e quem sabe, quem com ferro fere... Penso que a Igreja sinodal deve ser diferente disso. Como a vida comunitária cristã poderá ser parábola de um novo mundo possível se ela mesma não consegue superar seus conflitos sem partir para a exclusão? Prefiro o evangelho de Jesus que diz: perdoa o teu irmão até setenta vezes sete vezes.
[1] - Marcelo Barros é monge beneditino, biblista e escritor, assessor das comunidades eclesiais de base e de movimentos sociais. Foi durante 20 anos prior do Mosteiro da Anunciação do Senhor em Goiás, experiência de comunidade monástica inserida no meio dos pobres, ecumênica e mista com a presença de irmãos e irmãs. Tem 57 livros publicados no Brasil e em outras línguas.
[2] - COMBLIN, José, Vocação para a Liberdade, Paulus, 1998.