Vigília de Páscoa na noite do mundo doente
Sem a Vigília do Senhor, não podemos viver”.
É verdade que celebramos a ressurreição de Jesus e não ainda a sua parusia (manifestação de sua vinda). No entanto, mais do que nunca, esta celebração pascal de 2021 pode tomar o caráter de uma longa vigília que possa acender luzes, mesmo no meio da noite. Assim, poderá, mesmo ainda no escuro, antecipar algo da madrugada do dia que esperamos.
Certamente, nenhuma palavra ou explicação poderá expressar a beleza e o encanto que a noite pascal contém. A Vigília Pascal da noite desse sábado ou madrugada do domingo continua sendo, como dizia Santo Agostinho, “a mãe de todas as vigílias da Igreja”.
De acordo com um antigo relato cristão, as Atas dos Mártires, no século III, os cristãos de Abilene, no norte da África, enfrentaram o martírio só para não ter de renunciar a celebrá-la. Não que eles reduzissem a experiência da fé ao culto. A razão é que eles sentiam necessidade da Vigília para alimentar a fé e um novo estilo de vida. Por isso, escreveram ao imperador: “Sem a vigília do Senhor não podemos viver”.
Neste ano, mais uma vez, ministros e fieis, precisamos descobrir formas leigas e domésticas de celebrar essa Páscoa, em meio à quarentena. Mesmo separados, cada um/uma em sua casa, contemplamos nessa noite a lua cheia, primeiro sinal da Páscoa. É Páscoa porque chegou a primeira lua cheia da nova estação (a primavera no hemisfério norte). Assim como essa lua é uma nova lua cheia, esta Páscoa também é uma Páscoa nova.
Como primeiro rito desta vigília pascal em casa, cada um/uma pode respirar forte. Pode respirar por nós e pelos irmãos e irmãs que estão sem ar ou com dificuldade de respirar. O sopro é instrumento da Divina Ruah, o Espírito Santo. Celebremos o vento, lembremos da música do Dorival Caymmi e repitamos uns para os outros: - Vamos chamar o vento, vamos chamar o vento... Que esta seja uma vigília profética que invoque o vento. Uma ventania forte que entre pelas janelas do planalto e desarrume tudo o que a ordem assassina pensa ter organizado. Uma ventania que nos tire de nossos acomodamentos e nos jogue no descampado do risco.
Vamos reinventar o louvor do fogo e da água em comunhão com os povos ancestrais que pedem permissão aos ancestrais ou aos encantados para a comunhão com a mata, o rio, a fonte ou para acender um fogo...
É importante acolher a boa nova da Páscoa, dada pelo amor divino, na resistência da Mãe Terra, das águas e da natureza, assim como de tantos irmãos e irmãs que teimam em se manter vivos e de pé. Eles e elas não somente resistem, mas desafiam a morte se arriscando em ações e gestos de solidariedade às pessoas mais vulneráveis e às famílias mais carentes.
É preciso acolher a Páscoa principalmente no alimento da Palavra de Deus. Meditamos nas muitas páscoas (passagens de Deus) em nossas vidas e na vida do povo. Escutemos ou leiamos de novo a passagem simbólica da saída dos hebreus do Egito e da travessia do Mar Vermelho. E nos comprometamos a retomar o nosso primeiro amor. Na fé bíblica, o primeiro amor ao qual Deus nos chama é a espiritualidade do Êxodo, ou seja, a opção espiritual pela caminhada da libertação. Mesmo se agora você está sozinho/a, sinta-se participante disso, sob a condução do Espírito, ventania que soprou e abriu o mar para os hebreus passarem, assim como na madrugada do domingo, removeu a pedra do sepulcro vazio de Jesus. É esse mesmo Espírito que nos faz retomar a caminhada das mulheres que, antes do sol nascer, foram ao túmulo e o encontraram vazio e receberam de Deus o encargo de ser testemunhas da ressurreição.
Atualmente, muitos mensageiros e mensageiras de Deus (anjos e anjas) engravidam o mundo de ressurreição. Cuidam dos doentes, providenciam máscaras para a população carente e marmitas solidárias para pessoas que estão na rua. Também são anjos da ressurreição, jovens que buscam e ensaiam novos estilos de vida. Não é fácil em meio aos escombros provocados pelo Capitalismo assassino, organizar novo projeto de vida e colocar esse projeto no rumo do testemunho do Cristo ressuscitado.
Na Argentina, nos tempos da ditadura militar das mais sangrentas da América Latina, Maria Elena Walsh compôs e Mercedes Sosa imortalizou com sua voz uma canção que Renato Teixeira traduziu no Brasil: Como la cigarra. Nela escutamos a voz de cada um de nós, mas o eu dessa canção é principalmente o sujeito coletivo, protagonista de todas as resistências: povos indígenas, comunidades afrodescendentes, minorias sexuais e étnicas, todos que podem cantar assim:
“Tantas vezes me mataram,
Tantas vezes eu morri
Mas agora estou aqui
Ressuscitando
Agradeço ao meu destino
E a essa mão com um punhal
Porque me matou tão mal
E eu segui cantando
Cantando ao sol
Como uma cigarra
Depois de um ano embaixo da terra
Igual a um sobrevivente
Regressando da guerra
Tantas vezes me afastaram
Tantas reapareci
E por tudo que vivi
vivi chorando
Mas depois de tanto pranto
Eu aos poucos percebi
Que o meu sonho não tem dono
E segui cantando
Cantando ao sol
Como uma cigarra
Depois de um ano embaixo da terra
Igual a um sobrevivente
Regressando da guerra
Tantas vezes te mataram
Tantas ressuscitarás
Tantas noites passarás
Desesperando
Mas na hora do naufrágio
Na hora da escuridão
Alguém te resgatará
Para ir cantando
Cantando ao sol
Como uma cigarra
Depois de um ano embaixo da terra
Igual a um sobrevivente
Regressando da guerra
A cada um/uma de vocês, em sua casa, o abraço afetuoso que confirma: Jesus ressuscitou, alegremo-nos e anunciemos a nós mesmos e uns aos outros essa boa notícia. Feliz Páscoa!