As antigas Igrejas cristãs (Católica, Ortodoxas, Anglicana, Metodista e Luterana) começam hoje o tempo da Quaresma. A quarta-feira de cinzas é uma celebração que ficou mais na tradição católica e parece se contrapor ao Carnaval. Em uma paróquia que conheci, o padre fazia as cinzas da quarta-feira das fantasias do Carnaval que os fieis traziam para queimar. Pessoalmente, acho meio de mau gosto essa contraposição entre a brincadeira do Carnaval e a severidade da Quaresma, embora digam os históricos, que o Carnaval começou como três dias de festas e brincadeiras prevenindo o tempo mais penitencial da Quaresma. Isso pode ter sido assim na Idade Media, mas não corresponde ao espírito mais profundo desse tempo.
Nos primeiros séculos do Cristianismo, quando surgiu a Quaresma, era o tempo em que as pessoas (catecúmenos) se preparavam mais intensamente para o Batismo que receberiam na noite da Páscoa, na santa Vigília que é a mais importante de todas as celebrações cristãs. E pouco a pouco, esse tempo se tornou também o período do ano em que, do mesmo modo que os catecúmenos esperavam a Páscoa para serem batizados, os penitentes (pessoas que tinham rompido com a comunidade e desejavam voltar a ser da Igreja) se preparavam pedindo perdão e aprofundando a fé para serem reconciliados na quinta feira-santa e assim poderem já plenamente integrados na comunidade, celebrarem a Santa Páscoa. De todo modo, se vê que o sentido da Quaresma é preparar a Páscoa e fazer com que a celebração da Páscoa desse ano não seja uma repetição apenas ritual do receber cinzas e fazer coisas que em outras épocas do ano não praticamos (jejuns, abstenções e penitências). Não é isso. O sentido mais profundo da Quaresma é o que São Bento diz para os monges em sua regra: "esperar com alegria a Santa Páscoa".
Como viver isso hoje em dia? De um lado, a Páscoa não é apenas o rito que lembra a morte e ressurreição de Jesus. É um sacramento, isso é, um memorial que revive e nos faz atualizar em nossa vida e no mundo a energia da Páscoa de Jesus. Então, pessoalmente, considero a Quaresma e Páscoa como um tempo de renovação da consciência, revisão profunda de vida e como um tempo no qual me proponho a dar passos novos em um jeito novo de viver e de conviver. Isso não é fácil. Por isso, preciso sim intensificar não somente nesse tempo, mas a partir desse tempo, a leitura da palavra de Deus, a oração e a solidariedade efetiva e afetiva aos irmãos e irmãs, especialmente o meu compromisso prioritário e profundo com os pobres.
Houve uma época na qual, na Quaresma, eu fazia pequenos ou maiores gestos de renúncia (não comer doce na Quaresma, não ir ao cinema, etc). E quando acabava a Quaresma, tudo voltava ao normal. Não creio mais nesse tipo de ascese, embora compreendo o valor do auto-controle e do ser capaz de me dominar a mim mesmo naquilo que eu gosto. Mas, prefiro fazer esforço no que é essencial em mim e que sinto que ainda preciso mudar: a capacidade de partilhar tudo o que sou e o que tenho com os outros, a capacidade de lidar bem com a fragilidade da idade que chegou e com o corpo envelhecido que a gente sente que vai caindo aos pedaços, mas que o espírito seja capaz de mantê-lo de pé e altivo até a hora em que for o caso de partir.
A Quaresma é principalmente o tempo de retomar a esperança - esperança de que eu sou sim ainda e sempre capaz de me converter e me tornar mais semelhante ao meu mestre Jesus e mais irmão de todas as pessoas - Que nessa Quaresma Deus me torne mais uma pessoa de comunhão - que minha teologia parta do carinho e se faça sempre de ternura pelos meus irmãos humanos e por todos os seres vivos. Que essa conversão tome forma de solidariedade à natureza, no cuidado com os eco-sistemas (Campanha da Fraternidade desse ano de 2017) e me faça retomar sempre a esperança da construção do reino de Deus, mesmo no Brasil do Termer e do mundo do Trump. E aí sim "mesmo as trevas não são trevas para ti. A noite será clara como o dia" (Salmo 139), cântico que resume o Exsultet (anúncio feliz da nova Páscoa) que cantaremos na madrugada do domingo pascal.