Marcelo Barros
Se fôssemos filmar essas cenas do evangelho deste domingo, veríamos mais claro que todas elas se passam à noite. Essas sentenças de Jesus lembram a Vigília Pascal, a noite na qual, cada ano revivemos de modo mais forte nossa esperança de ressuscitar com Jesus. De fato, no sábado santo à noite, ou no domingo, pela madrugada, as comunidades cristãs de tradição antiga esperavam e reviviam a aurora da ressurreição, seja através do batismo de adultos, celebrado naquela noite, como pela renovação dos compromissos batismais da comunidade. Nas Igrejas antigas, a vigília pascal durava a noite inteira e era realmente em si mesmo um sacramento da vida cristã, ou seja, de um modo de viver renovado, na espera do Senhor que vem. Hoje, muitas comunidades eclesiais procuram recuperar essa mística da Vigília, que também é comum às espiritualidades originárias e negras.
Desde os
tempos da colônia, os escravos só podiam se reunir com um mínimo de liberdade
durante a noite, quando os patrões dormiam. Talvez por isso, mas também pelo
próprio caráter de vigília dos seus cultos,
até hoje, a maioria dos Xirês, as celebrações de Candomblé e de
Umbanda, são feitas durante a noite.
Também muitas comunidades indígenas mantêm o costume de se reunirem de madrugada,
ao redor da fogueira para o louvor e invocação aos Espíritos, ou aos
Encantados.
No trecho que escutamos hoje, Lucas 12, 32-
48, o evangelho parece dizer que nós,
cristãos e cristãs, vivemos em uma espécie de noite permanente, à espera da
vinda do reino. As comunidades precisam permanecer atentas e vigilantes. No
entanto, ao mesmo tempo, o Messias (Cristo) e o
reino podem tardar. Isso obrigou a comunidade de Lucas a mudar a
concepção da primeira geração cristã, que pensava que a vinda do reino e a
manifestação última do Cristo ao mundo ocorreria logo. No tempo de Lucas, as
comunidades já tinham percebido que não é assim e que o cristão tem de se
engajar na história, ao mesmo tempo, sem deixar de esperar.
Alguns
exegetas interpretaram esses capítulos de Lucas, 11- 13, como expressões da
“crise galilaica”, (galilaica porque corresponde ao final do tempo da missão de
Jesus na Galileia). Nesse momento de crise, Jesus se interroga sobre como
prosseguir sua missão de testemunha e arauto do reinado divino. Ele constata
que o que tinha feito antes, de certa forma, fracassou. E não sabe bem o que
fazer agora.
O evangelho
responde a essa questão dizendo que temos sim de esperar, mas de forma ativa e
que apresse aquilo que esperamos. O mundo e a vida não podem ser somente sala
de espera, na qual estamos apenas aguardando a vinda do reino... Por isso, as
comunidades recordaram algumas parábolas de Jesus que ensinam: temos de
continuar trabalhando. Só nessa breve passagem, são três parábolas: a primeira
é a do patrão que vai para uma festa de casamento e pode chegar de noite ou de madrugada.
A segunda parábola é a do ladrão que ninguém sabe a hora em que assalta a casa.
A terceira é a do/da administrador/a fiel que deve estar atento/a a prestar
conta de sua gestão, a qualquer momento e de modo inesperado. Então, seria um
erro pensar que, como o Senhor tarda, podemos viver tranquilos (v 45).
A vigilância
evangélica toma a forma de cidadania ativa e crítica que luta pacificamente
para que o reinado divino seja vivido desde agora, tanto no plano das
consciências, como no nível das estruturas sociais e políticas do mundo.
Portanto, nossas vigílias são litúrgicas, mas devem também ser vigílias atentas
ao que se passa no nível social e político do Brasil e do mundo. Vivemos a
expectativa do reino não de forma passiva e sim com atitude crítica de
vigilância sobre a realidade como os profetas, homens e mulheres, que um
discípulo de Isaías comparou com guarda-noturno que fica sobre a muralha,
velando sobre a cidade que dorme (Is 62).
A primeira
palavra com a qual Jesus abre o evangelho de hoje nos fala muito de perto: “Não
temais, meu pequeno rebanho, porque foi do agrado do Pai vos dar o Reino”. Além
de ser uma grande consolação escutar essa palavra tão carinhosa, ela é também
indicativo do caminho que devemos assumir. Ser “pequeno rebanho” não é apenas o
fato de sermos numericamente poucas pessoas. Ser pequeno rebanho significa
assumirmos a vocação de ser pequenos, ou seja, comunidade pobre, sem poder e
que vive a fé a partir de baixo. Não é pequeno rebanho o Cristianismo que se
coloca como aliado do poder, em grandes templos, basílicas e catedrais. O
evangelho sempre nos adverte contra a tentação de sermos importantes e
admirados pelos poderosos (Lc 6, 26). Dom Helder Camara propunha que nos
juntássemos na caminhada da libertação como “minorias abraâmicas”, com
consciência de sermos pequenos e frágeis, mas que como ao velho Abraão, Deus torna fecundos e capazes de
gerar uma vida nova. Em um poema-oração, Adélia Prado pedia:
“Meu Deus, me
dá cinco anos.
Me dá um pé de
fedegoso
com formiga
preta,
me dá um Natal
e sua véspera,
o ressonar das
pessoas no quartinho.
Me dá a
negrinha Fia pra eu brincar,
me dá uma
noite pra eu dormir com minha mãe.
Me dá minha
mãe, alegria sã e medo remediável,
me dá a mão,
me cura de ser grande,
ó meu Deus,
meu pai”,
(Adélia
Prado, Bagagem, Editora Record, página 12)
No começo dos
anos 40, em um cárcere nazista, o teólogo e pastor Dietrich Bonhoeffer escreve
em uma de suas cartas: “A Igreja só é Igreja quando existe para os outros. Para
fazer um início, ela deveria entregar todo o seu patrimônio aos necessitados.
Os ministros devem viver exclusivamente dos donativos voluntários da
comunidade, talvez além de exercer alguma profissão profana. A Igreja deve
participar das tarefas da vida na coletividade humana, não como quem governa,
mas como quem ajuda e serve”[1].
Acho que,
nesse evangelho de hoje, o trecho do versículo 45 em diante não deveria ser
lido nas comunidades. (De fato, a liturgia prevê a versão breve que termina
antes). Essa história do senhor que chega de repente e começa a torturar o
empregado era a realidade da época de Jesus e dos evangelhos, mas não pode
continuar a ser colocada com o risco de se compreender que Jesus está dizendo
que Deus agirá assim com as pessoas. É importante não disseminar mais essa
imagem de Deus que, se não fizermos o que Ele manda, Ele vem e nos castiga. O
evangelho tem de ser uma boa noticia e não uma ameaça para a vida das pessoas.
[1] -
Coletânea de trechos das cartas in CEI, in Missão Profética, Suplemento 9, setembro 1974, p. 18.